Carvão Animal (2011)

Carvão Animal, romance por Ana Paula Maia. Rio de Janeiro: Record, 2011.

Sem revelações significativas do enredo.

Há algum tempo, tomei a decisão de consumir mais literatura nacional, focando, principalmente, em obras mais recentes, produzidas por criadores que ainda estão vivos. Além disso, percebendo que meus autores favoritos eram todos homens, busquei incluir em minha lista de leituras livros escritos por mulheres. Os objetivos dessas resoluções eram bem simples: além de ampliar minha bagagem cultural, eu queria melhorar a minha escrita, muito influenciada pelos maneirismos comuns em textos traduzidos, já que eu lia quase que exclusivamente clássicos de literatura estrangeira. Tal decisão se mostrou acertada, pois me levou ao ótimo romance de Ana Paula Maia que é objeto de análise deste texto.
Logo de início, Carvão Animal já parte de uma premissa curiosa: um de seus protagonistas é um bombeiro, enquanto o outro é funcionário de um crematório; enquanto o primeiro salva pessoas de incêndios, o segundo usa o fogo para transformar defuntos em cinzas. O leitor, então, acompanha o cotidiano difícil de Ernesto Wesley e Ronivon, os dois sujeitos que se ocupam dessas profissões insalubres. Ambos estão cercados de personagens com histórias trágicas, tendo, eles mesmos, as suas próprias desgraças. Vivendo na decadente e fictícia Abalurdes, uma cidade destruída pela mineração e abarrotada de habitantes com doenças pulmonares, essas figuras embrutecidas parecem ser produto das condições degradantes nas quais vivem. Esse é, afinal, o tema central do livro: como o ser humano altera o ambiente ao seu redor e como esse ambiente cria determinados tipos de homens. É notável, inclusive, o quão bem Maia compreende esses homens, o que se reflete nas atitudes que a autora lhes confere, nos pensamentos que lhes atribui e nos diálogos que os faz travar entre si.  A arquitetura do crematório “Colina dos Anjos”, em que se passa boa parte da história, é uma perfeita metáfora para sua condição: da janela do subsolo, onde ficam os fornos, é possível ver apenas alguns centímetros acima da superfície, fazendo com que os trabalhadores permaneçam mais tempo embaixo do que em cima da terra.
É, ainda, admirável a forma com que a autora trabalha com as dualidades. Por conta do inverno rigoroso que castiga a cidade ficcional, os vivos precisam da energia produzida pela queima dos mortos para sobreviverem, uma vez que o crematório abastece energeticamente um hospital e alguns comércios da região. Assim, é perfeitamente possível dizer que Abalurdes não somente possui uma relação próxima com a morte, mas também que é literalmente alimentada pela miséria, pois os bêbados e indigentes que morrem de frio nas madrugadas continuamente alimentam o fogo que produz a energia necessária para seu funcionamento. E não importa como os poucos funcionários da Colina dos Anjos darão conta da fila crescente de corpos para cremar, nem em que condições eles deverão trabalhar, o que importa é que a queima não seja interrompida. Nem mesmo um acidente que tira a vida de um trabalhador e inutiliza um dos fornos é capaz de subverter essa lógica. “É o lugar mais triste que conheci na vida”, dirá um personagem sobre o crematório próximo ao final do livro, ao que Ronivon, um dos protagonistas, retruca: “Eu nunca conheci outro lugar”. Esse pequeno diálogo, mesmo em sua simplicidade, acaba carregando toda a essência da obra, sintetizando-a de maneira impressionante.
A escrita de Ana Paula Maia é outro aspecto a ser elogiado neste romance. Sua linguagem é simples e direta, sem rodeios, mas também seca e crua. A autora não nos poupa dos detalhes mórbidos, mas a dureza das descrições jamais chama atenção para si, antes se mostrando um artifício inteligente para retratar a dureza da vida dos personagens. Essa característica, portanto, acaba por enriquecer a obra, não funcionando como fonte de exibicionismo ou como simples artifício para chocar o leitor. O resultado é uma leitura fluida e prazerosa do início ao fim. Também vale destacar o uso soberbo de determinados símbolos, em especial os dentes, tudo o que resta do corpo humano após sua incineração. Diante disso, os bombeiros da história cuidam bem de seus dentes, pois sabem que eles possibilitarão a identificação de seus corpos em caso de morte em um incêndio. O velho Palmiro, funcionário antigo do crematório, guarda seu maior tesouro dentro da própria boca: os dentes de ouro que ele quer que sejam entregues à filha quando ele morrer. 
Além de tudo, o romance ainda acerta na caracterização do espaço em que o enredo transcorre, funcionando como um reflexo psicológico das figuras que o habitam, algo importante para a discussão temática proposta, como esboçado anteriormente. Dessa maneira, a cidade enevoada, poluída e decadente é o covil dos homens brutos cuja vida a autora nos convida a conhecer, o que fazemos a partir do aprendizado sobre seus ofícios socialmente desvalorizados. A opção pela invenção de um lugar fictício é compreensível do ponto de vista da liberdade criativa, uma vez que a autora não precisa ficar presa à história e aos costumes de um município real, mas sinto que uma maior especificação sobre onde a cidade inventada se situa ganharia em termos de verossimilhança, já que Abalurdes lembra mais uma Silent Hill que um município brasileiro de médio porte. Contudo, pode ser que essa seja uma reclamação impertinente, pois a dificuldade em ver plausibilidade no sentido apontado acima talvez se dê em razão da minha ignorância sobre as cidades brasileiras (afinal, não conheço todas elas). Talvez a autora tenha baseado sua criação em uma cidade real que ela conheça bem. Seja como for, fica até difícil considerar este um ponto negativo relevante.
Mostrando-se como um excelente exemplar da literatura brasileira contemporânea, Carvão Animal é um livro que carrega uma atmosfera densa, pesada e depressiva, mas que, apesar disso, é instigante, fascinante e incrivelmente bem escrito. Em outras palavras, uma ótima leitura, altamente recomendada para aqueles que, como eu, estão acostumados aos clássicos, mas querem se aventurar por novos mares. Ao lado de Dois Irmãos, de Milton Hatoum, o romance de Maia pode ser um bom ponto de partida.

Avaliação: 5/5


Renan Almeida é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros e HQs.

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