Dois Irmãos (2000)

Dois Irmãos, romance por Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [2000].

Sem revelações significativas do enredo.

Ciúmes, inveja e rancor são alguns dos piores sentimentos que podem emergir em qualquer ambiente familiar. Se eles já são danosos em contextos menos específicos, quando aparecem no seio de uma família, apresentam todo o seu potencial destrutivo. De certa maneira, Dois Irmãos é um romance sobre o poder do ressentimento, sobre a incapacidade humana de superar mágoas e de lidar com acontecimentos traumáticos do passado, mas, também e acima de tudo, é um livro sobre a memória, algo que é antecipado por sua própria epígrafe.
Ambientado em Manaus ao longo de várias décadas do século vinte, do pós-guerra ao início da ditadura militar, o premiado livro de Milton Hatoum conta a história dos gêmeos Omar e Yaqub e de sua família de ascendência libanesa. Donos de personalidades diametralmente opostas, os irmãos veem prontamente surgir entre eles uma série de tensões e conflitos. Por ser na prática o caçula, tendo nascido alguns minutos após Yaqub, Omar é mimado e superprotegido por sua mãe Zana. Uma gripe precoce também contribuiu para o zelo excessivo da mulher para com o filho mais novo, algo veementemente reprovado pelo pai dos garotos, o apaixonado Halim. Consequência de tal favoritismo ou não, Omar cresceu como um jovem desordeiro e rebelde, dando trabalho na escola e depois dela, mas sempre sendo perdoado pela mãe por seus inúmeros erros. O irmão, pelo contrário, acabou se revelando um sujeito circunspecto, organizado e estudioso. Mandado para o Líbano aos treze anos de idade, após um grave incidente com o caçula, Yaqub sempre se sentiu preterido e injustiçado pela família, nutrindo uma relação muito mais íntima com Domingas, a empregada doméstica da casa.
Nessa perspectiva, o romance aborda diversos episódios na vida dos irmãos, relatados por um narrador que, a princípio, parece não possuir envolvimento com a história e nem com seus personagens, mas que aos poucos revela sobre si e sobre sua relação com aquela família. Por conta de sua posição ambígua no interior desta, ele consegue transitar com incrível facilidade por praticamente todos os ambientes, chegando a conhecer os sentimentos e pensamentos de quase todos os que o rodeiam, sabendo muito mais sobre a vida dos outros do que sobre sua própria. O mistério a respeito do narrador, a propósito, é um dos elementos que movem a trama e mantêm o engajamento do leitor. Por esse motivo, discuto a questão sem entrar em muitos pormenores, buscando preservar a experiência de leitura. Em seu relato, o narrador caminha pelo passado e presente com muita naturalidade, deixando escapar diferentes versões de uma mesma história, algo que evidencia o cuidado de Hatoum com sua obra, uma vez que omissões e versões contraditórias de um acontecimento são normais quando se recorda o passado. Mesmo assim, o produto final é uma versão dos fatos extremamente rica em detalhes. 
Além disso, o romance mostra-se um excelente retrato do desenvolvimento da cidade amazonense, relatando as modificações efetuadas nas paisagens ao longo das décadas, com a chegada de imigrantes de diversas partes do país e do mundo. Antes de qualquer coisa, Dois Irmãos evidencia como localidades não tradicionais na literatura brasileira podem servir como cenário para uma história. Natural de Manaus, Milton Hatoum incorpora a cidade em sua narrativa de maneira bastante competente, sem que ela seja apenas um detalhe no enredo. Com efeito, é até difícil imaginar o romance se passando em qualquer outro lugar. Os casebres à beira do rio, as embarcações, o porto, a pesca, todos esses elementos estão presentes e são bem explorados em diferentes contextos e situações. É praticamente impossível esquecer a passagem em que Domingas faz uma revelação importante ao narrador, com toda a cautelosa descrição do ambiente em que tal ação se desenrola.
Também parece perpassar todo o livro uma peculiar atmosfera de erotismo. Em primeiro lugar, pode-se falar do incendiado amor de Halim e Zana, que se entregam um ao outro com imensa voracidade. Assim como diversas sugestões incestuosas, como a tensão sexual existente entre os gêmeos e sua irmã mais nova, Rânia. Sem falar, é claro, de uma espécie de complexo de Édipo às avessas que parece atravessar a relação de Zana com Omar. Provavelmente em consequência da vida de devassidão levada por ele, a mulher parece incapaz de deixá-lo partir, encarando suas pretendentes como rivais e deixando claro a elas quem será para sempre a mulher número um em sua vida. É claro que isso tem a ver com a superproteção já mencionada anteriormente, que vem de berço, mas o narrador não deixa de registrar tais momentos com certa áurea de sensualidade. Por último, pode-se mencionar a relação do viúvo Talib com suas duas filhas, que o tempo todo o impedem de se relacionar com outras mulheres.
Tudo isso confere profundidade e complexidade psicológica aos personagens, algo complementado pelos sutis comentários sociais presentes ao longo da obra. Como as demais empregadas domésticas da região, a índia Domingas é quase como uma escrava. Morando na casa dos patrões, sem outras perspectivas de vida e jogada nessa condição sem efetivamente ter optado por ela, a mulher chega a afirmar que é a afeição às crianças que ajudou a criar o que a mantém naquela casa. Além do mais, os primeiros meses da ditadura militar fornecem o contexto sociopolítico da última parte da trama. A repressão, aliás, é retratada de forma crua e verdadeira, com um tom marcadamente crítico: fala-se dos cinemas e escolas fechadas, dos desaparecimentos, assassinatos e nomes proibidos de serem mencionados.
Carregando temas como culpa, rancor, desejo e morte, Dois Irmãos é um romance extraordinário, com o melhor que a literatura contemporânea nacional tem a oferecer. Não deixa de ser impressionante a consistência da produção do seu autor, que até o momento coleciona o Prêmio Jabuti para quatro de seus cinco romances. Ele afirma que sua próxima obra será a última, mas francamente espero que isso não seja verdade, para o bem da literatura ficcional brasileira.

Avaliação: 5/5


Renan Almeida é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros e HQs.

Comentários

Postagens mais visitadas