O Feijão e o Sonho (1938)
O
Feijão e o Sonho, romance por Orígenes Lessa. São Paulo: Ática, 45ª ed., 1999 [1938].
Sem
revelações significativas do enredo.
O
protagonista de O Feijão e o Sonho
chega a irritar o leitor em alguns momentos, tamanha a sua incapacidade de
lidar com os problemas cotidianos de sua família. Poeta com um grande sucesso
publicado, Campos Lara é um homem que vive sonhando. Apesar das dificuldades
que enfrenta ao lado da esposa e dos três filhos (quando se inicia a história),
ele não consegue ser um homem prático e usar seus talentos e inteligência em
prol de uma vida financeira mais favorável. Ao contrário, o poeta é professor
de uma pequena escola em uma cidade do interior, onde dá aulas a um reduzido
número de alunos, cujos pais frequentemente atrasam o pagamento das
mensalidades. Sua esposa, Maria Rosa, apesar de geralmente ser a voz da razão e
do bom senso na casa, é uma mulher amarga, desagradável e com um gênio ruim.
Na
verdade, acompanhamos uma história que se passa durante boa parte numa cidade
do interior habitada por gente pouco instruída e de mentalidade limitada, que,
ao avistar um sujeito caminhando sozinho, é capaz de taxá-lo de louco. Em um
cenário de uma sociedade ainda bastante racista e xenofóbica, Campos Lara,
mesmo com sua incapacidade para a vida prática (que se traduz, em muitos
momentos, numa completa falta de noção), acaba ganhando a simpatia do leitor
por ser praticamente o único personagem que não se apresenta como mesquinho
e/ou detestável. Se, no início, o vemos com desconfiança, ao longo do romance
passamos a admirar seu caráter e a entender seu modo de encarar o mundo. Assim,
com o passar do tempo, passamos a enxergar os seus atos de outra forma.
Em uma época em que a
instrução e a educação formal não contavam muito, Maria Rosa chega a desejar
que os filhos, ao invés de se dedicarem aos estudos, comecem a trabalhar. Com o
conhecimento de que muitos poetas e escritores de renome viveram vidas
miseráveis, a mulher reza para que nenhum dos pequenos adquira interesse pelos
versos ou pela prosa. De fato, a vida de escritor costuma ser amarga, e outros
exemplos poderiam ainda ser acrescentados àqueles mencionados pela esposa do
poeta. O grande contista norte-americano Edgar Allan Poe, inclusive, foi um
homem com uma vida curta e conturbada, tendo lidado com o alcoolismo e
enfrentado inúmeras tragédias pessoais, acabando por morrer pobre e sozinho. Como
todo escritor ou aspirante a escritor deve saber, a escrita é como uma
maldição: aquele que a ela se dedica há de fazer isso pelo resto de sua vida. Maria
Rosa, quase como uma voz interior da razão ao longo de todo o romance, está
certa ao apontar a vaidade dos escritores. Vaidade esta que, fatalmente, Campos
Lara irá reconhecer em si próprio. Não se trata de uma preocupação excessiva
com a própria aparência. Não, não é uma vaidade física, mas intelectual. Se
assim não fosse, o protagonista não insistiria em manter relações com outros
literatos que, exatamente como faziam os habitantes da pequena cidade de
Capinzal, o maldizem pelas costas. A única diferença é que os intelectuais da
metrópole enchem-no de elogios, afagando seu ego. Desse modo, fica fácil
entender o porquê de Campos Lara encontrar justamente em um barbeiro semianalfabeto
com aspirações literárias um interlocutor.
Nesse contexto,
acompanhamos, em O Feijão e o Sonho,
a vida de sofrimento quase ininterrupto desse casal, causado principalmente –
mas não exclusivamente – pela sua situação financeira. Quando se inicia a
história, ambos já estão acomodados naquela condição, acostumados um ao outro e
à vida que levam. Vemos, contudo, os eventos que os levaram até ali e o
desenrolar de sua trajetória. O arco dramático do protagonista é,
provavelmente, a maior qualidade deste romance. Orígenes Lessa, jornalista e autor
de vários livros de contos, novelas e romances, é bastante eficaz ao retratar o
dilema de todo aquele que se dedica à escrita, uma atividade que, apesar de se
constituir como uma verdadeira paixão para aqueles que a exercem, dificilmente
traz um bom retorno financeiro. O romance, assim, compreende muito bem a
miséria dos escritores.
Contudo, ele não deixa
de ser um produto de sua época, uma época em que a divisão sexual do trabalho
ainda imperava como norma absoluta de organização da vida familiar. Vemos, por
exemplo, Maria Rosa, mesmo grávida, tendo de executar as tarefas domésticas. É
claro que o fato de as mulheres ainda serem primariamente as responsáveis pelas
tarefas relacionadas à manutenção do lar e ao cuidado de outros integrantes da
família nos diz que pouco avançamos no sentido de uma distribuição mais
igualitária do trabalho doméstico, mas é impossível não reconhecer que a
sociedade de hoje não é a mesma daquela da década de 1930. Nesta, a sugestão de
contratar uma menina para trabalhar como empregada doméstica é vista com
naturalidade. Hoje, por mais que o trabalho infantil ainda seja uma realidade,
ele não é mais tolerado e nem visto como natural. Infelizmente, porém, o
reconhecimento de Campos Lara e de Maria Rosa de que homem vence mais
facilmente na vida (algo que os faz inclusive torcer para que o último de seus
filhos seja menino), ainda se mostra verdadeiro nos dias atuais.
O
Feijão o Sonho foi para mim uma verdadeira surpresa. Guardado
há anos em minha estante, eu o ignorei contrariando justamente o velho ditado
popular segundo o qual não se deve julgar um livro pela capa. Por mais simples
que seja, o romance de Lessa possui alguns momentos marcantes, como aquele
envolvendo um relógio de parede ou aqueloutro no qual o protagonista se coloca
contra o mexerico de toda uma cidade. Ademais, quando lido por um aspirante a
escritor, o livro pode se tornar ainda mais interessante com um simples
exercício imaginativo: eu, no lugar de Campos Lara, agiria diferente? Entre a
quitação de uma dívida com o açougueiro e a compra de uma edição comentada de Crime e Castigo, qual dos dois eu
escolheria?
Avaliação:
4/5
Renan Almeida
é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e
bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por
cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros
e HQs.
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