Indicados a Melhor Filme - Oscar 2020

Sem revelações significativas sobre o enredo dos filmes comentados

1917, de Sam Mendes

Durante a Primeira Guerra Mundial, dois jovens soldados britânicos são encarregados de entregar a outro batalhão uma mensagem que pode salvar a vida de mil e seiscentos homens. O problema é que eles precisam atravessar a terra de ninguém e o território inimigo no menor tempo possível, de modo que consigam impedir a infantaria britânica de avançar para o que parece ser uma morte certa. Partindo desta premissa simples, 1917 é um filme bem realizado. Contando com direção de fotografia do sempre bom Roger Deakins e uma ótima edição e mixagem de som (como é de praxe nos filmes de guerra), o longa de Sam Mendes tem como atrativo principal o fato de emular ser rodado do começo ao fim em plano-sequência. Digo “emular” porque o filme não foi realmente rodado numa única tomada. Há cortes invisíveis aqui e ali, disfarçados pelo excelente trabalho de efeitos visuais, que conseguiu uniformizar as diferentes tomadas, fazendo-as parecer uma só. A utilização desse artifício, evidentemente, não chega a diminuir a qualidade do filme, que de fato pode ser considerado um feito técnico admirável. Contudo, é forçoso reconhecer que 1917 não traz nenhuma novidade do ponto de vista temático. Em muitos aspectos, o filme é incrivelmente comum. Na verdade, mesmo a ideia de contar uma história sem cortes aparentes não é exatamente original: tal proposta remete ao clássico Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock, lançado em 1948, que posteriormente foi repetida, com maior ou menor êxito, por outros filmes. De fato, há que se reconhecer o desafio de usar tal recurso em um cenário de guerra, em que tantos elementos precisam ser controlados, mas acaba que todo esse esforço chega a parecer supérfluo quando se leva em consideração sua execução em um projeto tão prosaico, tão lugar comum...

Avaliação: 3,5/5

Adoráveis Mulheres, de Greta Gerwig

Tive uma reação bem morna em relação a Lady Bird, o primeiro filme dirigido por Greta Gerwig. Longe de considerá-lo ruim, pelo contrário, fiz questão de elogiar suas qualidades quando escrevi sobre ele. Embora conte de maneira competente uma história simples sobre amadurecimento e aprendizado, trazendo personagens e situações com as quais muitos podem se identificar, não pude deixar de sentir que algumas situações presentes no longa foram exageradas pelo roteiro para criar conflito de forma fácil e que havia problemas de ritmo a partir da segunda metade da história. Seja como for, este segundo projeto de Gerwig se mostra muito mais consistente, mantendo as qualidades do anterior sem apresentar seus problemas. Assim como em Lady Bird, Adoráveis Mulheres centra-se em uma protagonista com espírito rebelde (inclusive interpretada pela mesma atriz, Saoirse Ronan), que aspira ser uma escritora de sucesso e se livrar da obrigação de ter de se casar com um homem rico para garantir o próprio sustento. Como naquele longa, neste conhecemos uma galeria de personagens intrigantes e bastante verossímeis, com motivações e personalidades muito bem definidas. Cada uma das irmãs March é vivida admiravelmente por suas respectivas intérpretes. Ao acompanharmos sua rotina em meio à escassez material e à ausência da figura paterna, somos transportados a um passado caloroso e agradável, tanto que o filme investe em esquemas de cores e iluminação diferentes para as cenas que se passam no presente e no passado da linha temporal narrativa. Neste as cores são quentes e exuberantes, enquanto naquele predominam os tons frios. Essa lógica visual traz um sentido interessante para o sótão da casa da família March: antes, um lugar aconchegante e que estimula a imaginação, depois, um espaço solitário e sem encanto. Do mesmo modo que histórias sobre máfia podem funcionar como bons estudos sociológicos, como argumento nos comentários sobre O Irlandês, de Martin Scorsese, histórias de época também podem ser lidas com o mesmo olhar. Nesse caso, é sempre válido chamar atenção à maneira como convenções sociais moldam comportamentos. Ao contrastar a sociedade do século XIX à contemporânea, podemos observar como normas e valores se alteram ao longo do tempo, ou mesmo se adaptam a diferentes situações e contextos. Quando assistimos A Época da Inocência, por exemplo (para ficar em um exemplo da filmografia de Scorsese), somos capazes de refletir sobre os constrangimentos que a sociedade impõe à escolha autônoma. Da mesma maneira, Vestígios do Dia, de James Ivory, mostra como um homem pode sacrificar sua felicidade pessoal pelo simples propósito de servir com distinção. Pode-se citar também Downton Abbey, o drama histórico da TV britânica criado por Julian Fellowes, que discute questões como conflitos de classe, desigualdade de gênero e até mesmo homofobia e racismo, contrastando a sociedade do início do século XX com aquela dos dias atuais. Adoráveis Mulheres é um filme que está interessado em refletir sobre o significado do casamento para as mulheres, levando em conta as limitações do que elas podiam fazer para ganhar a vida. Mais do que isso, o longa de Gerwig discute não apenas o que significava ser uma mulher naquela época, mas também o que significava ser uma mulher pobre. Com as oportunidades fechadas no mercado de trabalho, restava às esposas “enfeitarem” suas casas, como bibelôs. Contando com uma ótima trilha sonora e um design de produção formidável, Adoráveis Mulheres evidencia a importância da literatura para mulheres feita por mulheres, especialmente quando se considera que as personagens femininas, escritas quase sempre por homens, refletiam as visões deles do que deveria ser o papel delas  na sociedade. 

Avaliação: 4,5/5

Coringa, de Todd Phillips

Apesar de ter gostado razoavelmente do filme, saí da sessão com a impressão de que ele era um tanto superficial, só com a aparência de ser complexo e profundo. Embora se esforce para ser uma obra que discute temas importantes, como desigualdade social, o culto a celebridades e a forma como tratamos pessoas com doenças mentais, o longa parece ter pouco a dizer sobre eles, como se sua inclusão fosse meramente acessória. O filme parece querer investir num discurso antissistema, mas faz questão de afirmar que não tem lado político. Em seu afã de gritar contra “os poderosos”, acaba avançando um discurso vazio e juvenil no pior sentido da palavra. Em Coringa, Todd Phillips e seu corroteirista Scott Silver se assemelham àquela figura do adolescente intelectualizado que, sentindo-se superior à massa alienada, crê enxergar os problemas da sociedade que todos ignoram. Embora queira ser diferente dos outros filmes baseados em histórias em quadrinhos, Coringa não deixa de ser derivado à sua própria maneira. Inspirando-se nos filmes da Nova Hollywood dos anos 1970 e 1980, como Taxi Driver e O Rei da Comédia, de Martin Scorsese, o longa de Todd Phillips chega perto de plagiar essas obras, o que não acontece por muito pouco. Apesar desses deslizes, Coringa é salvo de ser um filme ruim graças à bela fotografia de Lawrence Sher, à imersiva trilha sonora de Hildur Guðnadóttir e à fantástica atuação de Joaquin Phoenix como o personagem-título. Phoenix, inspiradíssimo, praticamente carrega o filme nas costas. O trabalho de expressão corporal que o ator realiza aqui é formidável, e sua dedicação ao papel é tamanha que, mesmo criando uma versão bastante diferente do vilão dos quadrinhos, ainda é capaz de conquistar o espectador. Embora com um discurso confuso e um tanto púbere, Coringa conta com méritos técnicos inegáveis, mas talvez nas mãos de um diretor mais sagaz, como aqueles que Phillips tanto referencia, o filme pudesse ser realmente memorável.

Avaliação: 3/5

Era Uma Vez... Em Hollywood, de Quentin Tarantino

Quentin Tarantino é um dos cineastas mais celebrados da atualidade. Tendo dirigido oito longas-metragens originais de 1992 para cá (Jackie Brown é adaptação de um romance e os dois volumes de Kill Bill contam como uma única história), o ex-funcionário de locadora de filmes e agora criador de obras aclamadas pela crítica ainda não produziu nenhuma que pudesse ser classificada como ruim. Neste seu novo projeto, Tarantino entrega uma carta de amor à Hollywood dos anos 1950 e 1960, abrindo mão de seu estilo característico, com personagens verborrágicos e tramas não convencionais, para investir em uma jornada sentimental própria. Quando assistimos a Era Uma Vez... Em Hollywood, experimentamos a era de ouro do cinema estadunidense pelo olhar de Quentin Tarantino. Isso pode até parecer óbvio, mas é importante destacá-lo, pois o que vemos na tela não busca ser um retrato fidedigno daquela época, e sim uma reconstrução subjetiva a partir da experiência e vivência do autor. Por isso, a palavra que melhor define o filme é “nostalgia”. No entanto, o diretor cria uma narrativa imbuída de caráter nostálgico sem apelar para o saudosismo, que é quase sempre reacionário. Como é comum nas obras de Tarantino, o filme conta com uma catarse ao seu final, mas se encerra de forma terrivelmente triste, o que é inusitado para quem está familiarizado à sua filmografia, mas de jeito nenhum conta como um ponto negativo. Mesmo assim, ainda sinto que a duração do filme é um tanto excessiva, e a história contada não seria prejudicada se prescindisse das longuíssimas cenas de pessoas dirigindo carros de um lado a outro. No que se refere às atuações, Leonardo de DiCaprio entrega aquela que pode ser considerada uma das melhores performances de sua carreira. Apesar de ser um ator bem-sucedido, seu Rick Dalton apresenta um lado vulnerável que é fácil para o espectador se relacionar. Quando surgiram os primeiros boatos de que Tarantino dirigiria um filme sobre o Caso Tate-LaBianca, muitos comentaristas da mídia se mostraram receosos de que o diretor, conhecido pela violência extrema e estilizada de seus projetos, pudesse tratar com desrespeito a memória de Sharon Tate. Não só isso não acontece, como o cineasta parece até reverenciar a imagem da atriz, que é vivida de forma terna pela ótima Margot Robbie. Mostrando incrível controle da narrativa, o diretor chega a transitar pelo terreno do suspense e do terror, brincando com as expectativas do público. Era Uma Vez... Em Hollywood é um filme prazeroso de se assistir e, mesmo não estando entre os mais primorosos de Tarantino, é sem dúvidas uma obra digna de seu criador. 

Avaliação: 4/5

Ford vs Ferrari, de James Mangold

Este longa do diretor James Mangold é uma daquelas histórias sobre uma pessoa ou grupo de pessoas que precisa vencer um desafio contra todas as probabilidades. Ao descrever o filme desse modo, quero enfatizar que não é necessário ser um fã de corridas e automobilismo para aproveitá-lo, assim como não é necessário gostar de boxe para apreciar Rocky: Um Lutador. No fim das contas, são histórias de pessoas apaixonadas por aquilo que fazem e que precisam superar as adversidades para alcançar um objetivo final de difícil consecução. Em Ford vs Ferrari, a propósito, o personagem de Matt Damon, em determinado momento, chega a falar explicitamente sobre isso, repetindo uma frase de seu pai sobre como um homem que sabe o que quer fazer na vida é um homem sortudo, pois nunca precisará trabalhar. É essa paixão dos protagonistas que move a trama e engaja o público. Enquanto projetam para a Ford Motor Company o carro esportivo capaz de vencer as 24 Horas de Le Mans, uma das mais tradicionais corridas automobilísticas de resistência do mundo, o engenheiro automotivo e ex-piloto Carroll Shelby, interpretado por Damon, e o irritadiço piloto profissional Ken Milles, vivido por Christian Bale, precisam lidar com as exigências e caprichos de executivos engravatados. O filme conta com uma montagem excelente, que consegue alternar entre os diferentes núcleos da narrativa de forma muito orgânica, mantendo o ritmo dinâmico das sequências de corrida. Como de costume, Bale apresenta uma performance acima da média, e, embora não tenha conseguido uma vaga entre os indicados deste ano na categoria de melhor ator na premiação da Academia, não deixa de ser impressionante lembrar que, há apenas um ano, ele concorria pela interpretação do ex-vice presidente americano Dick Cheney. Em suma, Ford vs Ferrari é um filme charmoso e bem realizado, com um roteiro redondo, que introduz as principais informações e motivações necessárias para o desenvolvimento da história e dos personagens nos momentos mais oportunos, mas que segue batidas narrativas um tanto convencionais. Provavelmente, ninguém morrerá de amores pelo longa, mas dificilmente alguém dele irá desgostar. 

Avaliação: 3,5/5

História de um Casamento, de Noah Baumbach

Assim que terminei de assistir a este filme, o primeiro pensamento que veio à minha mente foi: “Do mesmo jeito que Precisamos Falar sobre Kevin te deixa com medo de ter filhos, História de um Casamento te deixa com medo de se casar”. Dito dessa forma, o comentário soa como uma piada infame, até porque esta produção da Netflix não é nem de longe a melhor obra a retratar os descaminhos, suplícios e dessabores do matrimônio. De Olhos Bem Fechados, de Kubrick, Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson, ou o brasileiro Como Nossos Pais, de Laís Bodanzky, para ficar apenas em alguns exemplos, representam muito melhor os conflitos da vida matrimonial (o mesmo poderia ser dito das novelas O diabo e Felicidade Conjugal, de Tolstói). No entanto, História de um Casamento mostra esplendidamente o quanto um processo de divórcio pode ser cansativo e doloroso – e também dispendioso, vale dizer –, especialmente quando há crianças e interesses tão distintos envolvidos. Assim, o “medo” de se casar referido acima diz respeito não aos problemas inerentes à manutenção de um relacionamento tipicamente monogâmico, consumado contratualmente, mas sim à possibilidade de ter de passar por tal processo, o que indica que o título “História de um Divórcio”, em alternativa ao original, seria bem pertinente ao filme. O motivo de o longa de Noah Baumbach provocar esse tipo de sensação se deve a dois fatores principais: à verossimilhança dos acontecimentos encenados e à força das atuações. Quanto ao primeiro fator, há que se elogiar a inteligência do roteiro escrito pelo próprio diretor, que não apenas busca expor os dois lados da história com equilíbrio (embora nem sempre seja exitoso nesse intuito), apresentando as frustrações e ressentimentos que cada um  nutre em relação ao outro, mas também encontra espaço para fazer um comentário a respeito dos papéis socialmente esperados de homens e mulheres como pais e mães. Quanto ao segundo fator, merecem aplausos as ótimas performances de Adam Driver e Scarlett Johansson, que, por meio de sua intensa entrega aos seus respectivos papéis, contribuem para conferir verdade aos eventos testemunhados pelo espectador. Nos momentos em que seus personagens discutem, é possível perceber a gradual perda da paciência, que se manifesta em mudanças súbitas no pitch vocal, inquietação e, eventualmente, lágrimas, tudo entregue de maneira quase natural pelos dois atores principais. Por fim, História de um Casamento conta com uma direção discreta e operante, que raramente chama atenção a si mesma, mas, vez ou outra, busca representar algum sentimento de forma visual, como na cena em que o casal fecha um portão entre si enquanto se encara. 

Avaliação: 4/5

Jojo Rabbit, de Taika Waititi

Johannes “Jojo” Betzler é um garoto solitário crescendo na Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Doutrinado pela ideologia do Terceiro Reich de Hitler e condicionado a agir como um fanático, ele entra em conflito quando descobre que sua mãe abriga uma garota judia no sótão de sua casa. Se esta breve sinopse soa familiar, é porque Jojo Rabbit, de Taika Waititi, é de fato um filme bem convencional. Sabemos, desde o princípio, que o longa contará uma história de crescimento, aprendizado e descoberta de humanidade no outro. Seu realizador, que além de dirigir, assina o roteiro e interpreta uma versão imaginária e pateta de Hitler, investe em piadas arriscadas, especialmente quando consideramos o contexto político recente, mas que funcionam na maior parte do tempo. É particularmente divertida a gag envolvendo a conhecida saudação nazista, mas também é possível destacar as sequências que tiram sarro da completa falta de noção do ufanismo cego. Mas talvez o melhor aspecto de Jojo Rabbit seja mesmo a atuação de Scarlett Johansson como a adorável Rosie Betzler, que encanta em seu comprometimento com uma causa nobre ao mesmo tempo em que busca proteger o próprio filho, atuando como uma verdadeira amiga deste, apesar de suas divergências. O jovem ator Roman Griffin Davis, que vive Jojo, faz um trabalho funcional, saindo-se melhor que seu colega Archie Yates, que embora possua alguns dos diálogos mais divertidos, nem sempre os entrega da melhor maneira. Já Thomasin McKenzie sai-se muito bem, vivendo os dramas e conflitos de sua Elsa Korr de forma competente. A versão abobalhada de Hitler interpretada por Waititi, que funciona quase como um alter ego de Jojo, é de fato espirituosa, mas não deixa de soar estranho que a parte do protagonista que lhe dá apoio e confiança em seus momentos de dificuldade seja justamente aquela que incorpora seu lado mais fundamentalista e doutrinário. A fotografia do filme, mais colorida e aprazível no início da história, embora pareça querer refletir o deslumbramento juvenil do protagonista, bem como o período feliz de sua vida, compartilhado com a mãe, acaba, não intencionalmente, transmitindo uma sensação ambígua. À medida que o filme se torna mais cinza, com cores mais apagadas, podemos supor que as experiências vividas por Jojo contribuíram para seu amadurecimento e mudança como indivíduo, representando o abandono da ingenuidade da infância, mas, alternativamente, poderíamos entender a alteração na dinâmica das cores como o distanciamento de um período radiante, em que o ambiente bucólico de antes contrasta com a devastação de agora trazida pelas forças inimigas, o que, tenho certeza, não era a intenção do diretor. 

Avaliação: 3/5

O Irlandês, de Martin Scorsese

Eu sempre pensei nos filmes sobre a máfia italiana nos Estados Unidos como estudos sociológicos, investigações sobre o funcionamento de uma organização com suas próprias regras, códigos e estrutura hierárquica. É claro que há também, nessas obras, os tiros, as explosões, as traições, as vendettas... Mas o que realmente intriga no gênero é como as normas e valores dessa organização sobrevivem aos mais diferentes contextos e afetam as pessoas a ela submetidas, tanto no nível individual quanto no interpessoal. A mim sempre pareceu fascinante como um homem poderia sentar ao lado de outro a quem sempre considerou um amigo, tratá-lo com estima e amabilidade, apenas para no minuto seguinte assassiná-lo com crueldade. Desde que se popularizaram, os filmes sobre a Cosa nostra italiana nos ensinaram um pouco sobre essas regras e códigos específicos, bem como sobre a extensão da influência de tal associação criminosa na sociedade norte-americana. Nesse sentido (e apenas nesse sentido), O Irlandês é semelhante a outras histórias sobre a máfia: ao longo da projeção, não apenas aprendemos o significado de alguém dizer que está “um pouco preocupado” com algo ou da frase “pintar casas”, mas também nos surpreendemos ao observar como os mafiosos puderam influir até mesmo em uma eleição presidencial. Por outro lado, o novo longa de Scorsese funciona praticamente como uma síntese dos temas já trabalhados pelo diretor em seus projetos anteriores. Ao apresentar diferentes personagens, o roteiro de Steven Zaillian conta com legendas que revelam seus destinos, servindo como lembretes dos caminhos que, conforme nos ensinou The Sopranos, estão disponíveis para as pessoas que escolhem esse estilo de vida: quando não a colaboração com a polícia (vedada pela omertà, a lei do silêncio, sob pena de morte), a prisão ou uma morte violenta. E por falar no extraordinário seriado de David Chase exibido pela HBO (do qual lamentavelmente Scorsese não é fã), é prazeroso ver atores que dele fizeram parte com papéis em O Irlandês, como Kathrine Narducci, que interpreta a esposa do gângster Russell Bufalino, e Steven Van Zandt, que faz uma ponta como o cantor Jerry Vale. Diferentemente de Os Bons Companheiros, em que primeiro mergulhamos no mundo do crime a partir de um olhar sedutor, com todas as supostas vantagens que oferece, para apenas depois vermos tudo desabar, finalmente enxergando seu lado sombrio e temerário, O Irlandês conta com uma atmosfera melancólica do começo ao fim, que é concebida com a ajuda da trilha sonora sempre soturna. As músicas não originais presentes no filme, cuidadosamente selecionadas, também contribuem nessa direção, aparecendo nos momentos certos da trama (como In the Still of the Night, dos Five Satins, que abre e encerra o longa). Scorsese, aliás, controla a narrativa habilmente, como o veterano que é, e a história vai e volta no tempo sem causar confusão ao espectador. Também são dignos de nota os efeitos visuais do longa. Embora o rejuvenescimento facial de Robert De Niro provoque certo estranhamento a princípio (ao menos em mim provocou), ele acaba se mostrando competente após esse impacto inicial, o que só funciona graças ao trabalho corporal do ator, que, no auge de seus setenta e seis anos, consegue, dentro de seus limites físicos (evidenciados numa cena de espancamento perto do início do filme) convencer como um homem perto dos quarenta. O trabalho de maquiagem, principalmente para o envelhecimento de certos personagens, também é admirável. Após anos atuando de forma medíocre em projetos desinteressantes, De Niro finalmente volta à boa forma, mas acaba soando um pouco artificial quando seu Frank Sheeran, em determinado momento do filme, tem de mentir para outro personagem por telefone. Mesmo assim, é formidável quão bem ele incorpora o sujeito durão que, por sua ascendência, estará sempre na posição de receber ordens de alguém com mais poderes, por mais que ele próprio tenha prosperado no mundo do crime. O conflito vivido por seu personagem em relação a um acontecimento envolvendo o de Al Pacino torna-se relacionável justamente pela excelente dinâmica que os dois atores possuem em cena. E o que falar da atuação de Joe Pesci, a não ser que é incrível? Ao contrário dos personagens explosivos que – de forma igualmente competente – ele costumava fazer em outros filmes de Scorsese (como Os Bons Companheiros e Cassino), aqui sua interpretação é comedida, inspirando medo (e, alguns diriam, respeito) sem em nenhum momento recorrer a gritos ou agressividade. As sequências em que seu personagem e o de De Niro compartilham um pão, em diferentes momentos de suas vidas, são de um simbolismo extremamente poderoso. O trabalho de Al Pacino na pele do líder sindical Jimmy Hoffa, por sua vez, é irretocável. O ator rouba para si a atenção de cada cena da qual participa e encarna Hoffa com tamanha autenticidade que quase faz o espectador enxergá-lo sob a mesma luz que ele é visto pela personagem de Anna Paquin. Cabe pontuar, ainda, que mesmo entre um elenco de gigantes, Paquin também merece crédito, por tudo o que consegue fazer com pouco tempo de cena e pouquíssimas falas, atuando basicamente com o olhar e com as expressões faciais. No fim das contas, o épico de Scorsese nos mostra que, por trás da opulência da vida de crime, há sofrimento e solidão, e mesmo que demore a punição um dia chega para todos, de uma forma ou de outra.

Avaliação: 4,5/5

Parasita, de Bong Joon-ho

Em 1978, quando o ditador Ernesto Geisel indicou o general João Figueiredo para ser seu sucessor, este último proferiu a um jornalista aquela que se tornaria uma das maiores pérolas da política brasileira: ao ser indagado se gostava do “cheiro do povo”, Figueiredo respondeu que “o cheirinho do cavalo é melhor”. Ao que parece, a aversão ao “cheiro do povo” não é uma exclusividade das elites brasileiras, como, de maneira muito perspicaz, nos mostra o filme de Bong Joon-ho. Acompanhando uma família coreana que passa por enormes dificuldades financeiras e vive em um porão, Parasita é uma obra que reflete sobre questões como desemprego estrutural e desigualdade de classe na atual fase do capitalismo globalizado. Quando Ki-woo (Choi Woo-shik), o filho mais velho dessa família, é contratado como professor particular de uma adolescente de classe alta, uma oportunidade de ouro emerge, e junto de seu pai, mãe e irmã, ele passa a planejar maneiras de conseguir empregos para todos os três na casa dos abastados Park. É fantástico como estes, manipulados pelos protagonistas, vivem suas vidas tranquilamente, sem ciência do que acontece debaixo de seus narizes, o que acaba funcionando como uma metáfora perfeita para os temas discutidos no longa, representando o alheamento dos ricos àquilo que acontece fora de sua bolha. É, aliás, extremamente oportuna a resposta da irmã de Ki-woo quando este indaga o que seu amigo endinheirado faria se estivesse em determinada situação: como acertadamente Ki-jung (Park So-dam) afirma, ele jamais se encontraria em tal situação. De forma brilhante, Parasita discute essas questões ao mesmo tempo em que engaja o espectador num thriller absolutamente fascinante, fornecendo um material com elevado valor de entretenimento, algo parecido com que Mad Max: Estrada da Fúria fez em 2015. O roteiro, escrito pelo próprio diretor em colaboração com Han Jin-won, ainda conta com pequenas “pistas” sobre acontecimentos vindouros da trama, como quando o sr. Park interpretado por Lee Sun-kyun afirma que o único ponto negativo de sua governanta é ela “comer por duas pessoas”. Embora todo o elenco se saia admiravelmente bem, o destaque realmente fica para Song Kang-ho, que vive Ki-taek, o pai da família protagonista. Revelando como as distinções sociais podem se manifestar por meio de hostilidades sutis, Parasita traz a triste mensagem de que não adianta fazer planos quando a vida insiste em te ferrar, e que é fácil ser simpático e gentil quando não é necessário se preocupar com a própria sobrevivência. Como o próprio diretor Bong Joon-ho disse em entrevista, o que ele queria com este filme era expressar um sentimento específico à cultura coreana, mas, no fim das contas, as reações do público em diversas partes do mundo foram muito parecidas, como se, essencialmente, vivêssemos no mesmo país, um país chamado capitalismo.

Avaliação: 5/5


Renan Almeida é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros e HQs.

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