Indicados a Melhor Filme - Oscar 2020
Sem revelações significativas sobre
o enredo dos filmes comentados
Avaliação: 4,5/5
1917,
de Sam Mendes
Durante
a Primeira Guerra Mundial, dois jovens soldados britânicos são encarregados de
entregar a outro batalhão uma mensagem que pode salvar a vida de mil e
seiscentos homens. O problema é que eles precisam atravessar a terra de ninguém
e o território inimigo no menor tempo possível, de modo que consigam impedir a
infantaria britânica de avançar para o que parece ser uma morte certa. Partindo
desta premissa simples, 1917 é um
filme bem realizado. Contando com direção de fotografia do sempre bom Roger
Deakins e uma ótima edição e mixagem de som (como é de praxe nos filmes de
guerra), o longa de Sam Mendes tem como atrativo principal o fato de emular ser
rodado do começo ao fim em plano-sequência. Digo “emular” porque o filme não
foi realmente rodado numa única tomada. Há cortes invisíveis aqui e ali, disfarçados
pelo excelente trabalho de efeitos visuais, que conseguiu uniformizar as
diferentes tomadas, fazendo-as parecer uma só. A utilização desse artifício,
evidentemente, não chega a diminuir a qualidade do filme, que de fato pode ser
considerado um feito técnico admirável. Contudo, é forçoso reconhecer que 1917 não traz nenhuma novidade do ponto
de vista temático. Em muitos aspectos, o filme é incrivelmente comum. Na
verdade, mesmo a ideia de contar uma história sem cortes aparentes não é
exatamente original: tal proposta remete ao clássico Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock, lançado em 1948, que posteriormente
foi repetida, com maior ou menor êxito, por outros filmes. De fato, há que se
reconhecer o desafio de usar tal recurso em um cenário de guerra, em que tantos
elementos precisam ser controlados, mas acaba que todo esse esforço chega a
parecer supérfluo quando se leva em consideração sua execução em um projeto tão
prosaico, tão lugar comum...
Avaliação:
3,5/5
Adoráveis Mulheres,
de Greta Gerwig
Tive
uma reação bem morna em relação a Lady
Bird, o primeiro filme dirigido por Greta Gerwig. Longe de considerá-lo
ruim, pelo contrário, fiz questão de elogiar suas qualidades quando escrevi sobre ele. Embora conte de maneira competente uma história simples sobre
amadurecimento e aprendizado, trazendo personagens e situações com as quais
muitos podem se identificar, não pude deixar de sentir que algumas situações presentes
no longa foram exageradas pelo roteiro para criar conflito de forma fácil e que
havia problemas de ritmo a partir da segunda metade da história. Seja como for,
este segundo projeto de Gerwig se mostra muito mais consistente, mantendo as
qualidades do anterior sem apresentar seus problemas. Assim como em Lady Bird, Adoráveis Mulheres centra-se em uma protagonista com espírito
rebelde (inclusive interpretada pela mesma atriz, Saoirse Ronan), que aspira
ser uma escritora de sucesso e se livrar da obrigação de ter de se casar com um
homem rico para garantir o próprio sustento. Como naquele longa, neste
conhecemos uma galeria de personagens intrigantes e bastante verossímeis, com motivações
e personalidades muito bem definidas. Cada uma das irmãs March é vivida
admiravelmente por suas respectivas intérpretes. Ao acompanharmos sua rotina em
meio à escassez material e à ausência da figura paterna, somos transportados a
um passado caloroso e agradável, tanto que o filme investe em esquemas de cores
e iluminação diferentes para as cenas que se passam no presente e no passado da
linha temporal narrativa. Neste as cores são quentes e exuberantes, enquanto
naquele predominam os tons frios. Essa lógica visual traz um sentido
interessante para o sótão da casa da família March: antes, um lugar
aconchegante e que estimula a imaginação, depois, um espaço solitário e sem
encanto. Do mesmo modo que histórias sobre máfia podem funcionar como bons
estudos sociológicos, como argumento nos comentários sobre O Irlandês, de Martin Scorsese, histórias de época também podem ser
lidas com o mesmo olhar. Nesse caso, é sempre válido chamar atenção à maneira
como convenções sociais moldam comportamentos. Ao contrastar a sociedade do
século XIX à contemporânea, podemos observar como normas e valores se alteram
ao longo do tempo, ou mesmo se adaptam a diferentes situações e contextos.
Quando assistimos A Época da Inocência,
por exemplo (para ficar em um exemplo da filmografia de Scorsese), somos
capazes de refletir sobre os constrangimentos que a sociedade impõe à escolha
autônoma. Da mesma maneira, Vestígios do
Dia, de James Ivory, mostra como um homem pode sacrificar sua felicidade
pessoal pelo simples propósito de servir com distinção. Pode-se citar também Downton Abbey, o drama histórico da TV
britânica criado por Julian Fellowes, que discute questões como conflitos de
classe, desigualdade de gênero e até mesmo homofobia e racismo, contrastando a
sociedade do início do século XX com aquela dos dias atuais. Adoráveis Mulheres é um filme que está
interessado em refletir sobre o significado do casamento para as mulheres,
levando em conta as limitações do que elas podiam fazer para ganhar a vida.
Mais do que isso, o longa de Gerwig discute não apenas o que significava ser
uma mulher naquela época, mas também o que significava ser uma mulher pobre.
Com as oportunidades fechadas no mercado de trabalho, restava às esposas “enfeitarem”
suas casas, como bibelôs. Contando com uma ótima trilha sonora e um design de
produção formidável, Adoráveis Mulheres
evidencia a importância da literatura para mulheres feita por mulheres,
especialmente quando se considera que as personagens femininas, escritas quase
sempre por homens, refletiam as visões deles do que deveria ser o papel delas na sociedade.
Avaliação:
4,5/5
Coringa,
de Todd Phillips
Apesar
de ter gostado razoavelmente do filme, saí da sessão com a impressão de que ele
era um tanto superficial, só com a aparência de ser complexo e profundo. Embora
se esforce para ser uma obra que discute temas importantes, como desigualdade
social, o culto a celebridades e a forma como tratamos pessoas com doenças
mentais, o longa parece ter pouco a dizer sobre eles, como se sua inclusão
fosse meramente acessória. O filme parece querer investir num discurso
antissistema, mas faz questão de afirmar que não tem lado político. Em seu afã
de gritar contra “os poderosos”, acaba avançando um discurso vazio e juvenil no
pior sentido da palavra. Em Coringa,
Todd Phillips e seu corroteirista Scott Silver se assemelham àquela figura do
adolescente intelectualizado que, sentindo-se superior à massa alienada, crê
enxergar os problemas da sociedade que todos ignoram. Embora queira ser
diferente dos outros filmes baseados em histórias em quadrinhos, Coringa não deixa de ser derivado à sua
própria maneira. Inspirando-se nos filmes da Nova Hollywood dos anos 1970 e
1980, como Taxi Driver e O Rei da Comédia, de Martin Scorsese, o
longa de Todd Phillips chega perto de plagiar essas obras, o que não acontece
por muito pouco. Apesar desses deslizes, Coringa
é salvo de ser um filme ruim graças à bela fotografia de Lawrence Sher, à
imersiva trilha sonora de Hildur Guðnadóttir e à fantástica atuação de Joaquin
Phoenix como o personagem-título. Phoenix, inspiradíssimo, praticamente carrega
o filme nas costas. O trabalho de expressão corporal que o ator realiza aqui é
formidável, e sua dedicação ao papel é tamanha que, mesmo criando uma versão
bastante diferente do vilão dos quadrinhos, ainda é capaz de conquistar o
espectador. Embora com um discurso confuso e um tanto púbere, Coringa conta com méritos técnicos
inegáveis, mas talvez nas mãos de um diretor mais sagaz, como aqueles que
Phillips tanto referencia, o filme pudesse ser realmente memorável.
Avaliação:
3/5
Era Uma Vez... Em Hollywood,
de Quentin Tarantino
Quentin
Tarantino é um dos cineastas mais celebrados da atualidade. Tendo dirigido oito
longas-metragens originais de 1992 para cá (Jackie Brown é adaptação de um
romance e os dois volumes de Kill Bill contam como uma única história), o
ex-funcionário de locadora de filmes e agora criador de obras aclamadas pela
crítica ainda não produziu nenhuma que pudesse ser classificada como ruim. Neste
seu novo projeto, Tarantino entrega uma carta de amor à Hollywood dos anos 1950
e 1960, abrindo mão de seu estilo característico, com personagens verborrágicos
e tramas não convencionais, para investir em uma jornada sentimental própria. Quando
assistimos a Era Uma Vez... Em Hollywood,
experimentamos a era de ouro do cinema estadunidense pelo olhar de Quentin
Tarantino. Isso pode até parecer óbvio, mas é importante destacá-lo, pois o que
vemos na tela não busca ser um retrato fidedigno daquela época, e sim uma
reconstrução subjetiva a partir da experiência e vivência do autor. Por isso, a
palavra que melhor define o filme é “nostalgia”. No entanto, o diretor cria uma
narrativa imbuída de caráter nostálgico sem apelar para o saudosismo, que é quase
sempre reacionário. Como é comum nas obras de Tarantino, o filme conta com uma
catarse ao seu final, mas se encerra de forma terrivelmente triste, o que é inusitado para quem está familiarizado à sua filmografia, mas de jeito nenhum conta como um ponto negativo. Mesmo assim, ainda sinto
que a duração do filme é um tanto excessiva, e a história contada não seria
prejudicada se prescindisse das longuíssimas cenas de pessoas dirigindo
carros de um lado a outro. No que se refere às atuações, Leonardo de DiCaprio
entrega aquela que pode ser considerada uma das melhores performances de sua
carreira. Apesar de ser um ator bem-sucedido, seu Rick Dalton apresenta um lado
vulnerável que é fácil para o espectador se relacionar. Quando surgiram os
primeiros boatos de que Tarantino dirigiria um filme sobre o Caso Tate-LaBianca,
muitos comentaristas da mídia se mostraram receosos de que o diretor, conhecido
pela violência extrema e estilizada de seus projetos, pudesse tratar com
desrespeito a memória de Sharon Tate. Não só isso não acontece, como o cineasta
parece até reverenciar a imagem da atriz, que é vivida de forma terna pela
ótima Margot Robbie. Mostrando incrível controle da narrativa, o diretor chega
a transitar pelo terreno do suspense e do terror, brincando com as expectativas
do público. Era Uma Vez... Em Hollywood
é um filme prazeroso de se assistir e, mesmo não estando entre os mais
primorosos de Tarantino, é sem dúvidas uma obra digna de seu criador.
Avaliação:
4/5
Ford vs Ferrari,
de James Mangold
Este
longa do diretor James Mangold é uma daquelas histórias sobre uma pessoa ou
grupo de pessoas que precisa vencer um desafio contra todas as probabilidades. Ao
descrever o filme desse modo, quero enfatizar que não é necessário ser um fã de
corridas e automobilismo para aproveitá-lo, assim como não é necessário gostar
de boxe para apreciar Rocky: Um Lutador.
No fim das contas, são histórias de pessoas apaixonadas por aquilo que fazem e
que precisam superar as adversidades para alcançar um objetivo final de difícil
consecução. Em Ford vs Ferrari, a
propósito, o personagem de Matt Damon, em determinado momento, chega a falar
explicitamente sobre isso, repetindo uma frase de seu pai sobre como um homem
que sabe o que quer fazer na vida é um homem sortudo, pois nunca precisará
trabalhar. É essa paixão dos protagonistas que move a trama e engaja o público.
Enquanto projetam para a Ford Motor
Company o carro esportivo capaz de vencer as 24 Horas de Le Mans, uma das
mais tradicionais corridas automobilísticas de resistência do mundo, o
engenheiro automotivo e ex-piloto Carroll Shelby, interpretado por Damon, e o irritadiço
piloto profissional Ken Milles, vivido por Christian Bale, precisam lidar com
as exigências e caprichos de executivos engravatados. O filme conta com uma
montagem excelente, que consegue alternar entre os diferentes núcleos da
narrativa de forma muito orgânica, mantendo o ritmo dinâmico das sequências de
corrida. Como de costume, Bale apresenta uma performance acima da média, e,
embora não tenha conseguido uma vaga entre os indicados deste ano na categoria
de melhor ator na premiação da Academia, não deixa de ser impressionante
lembrar que, há apenas um ano, ele concorria pela interpretação do ex-vice
presidente americano Dick Cheney. Em suma, Ford
vs Ferrari é um filme charmoso e bem realizado, com um roteiro redondo, que
introduz as principais informações e motivações necessárias para o desenvolvimento
da história e dos personagens nos momentos mais oportunos, mas que segue
batidas narrativas um tanto convencionais. Provavelmente, ninguém morrerá de amores
pelo longa, mas dificilmente alguém dele irá desgostar.
Avaliação:
3,5/5
História de um Casamento,
de Noah Baumbach
Assim
que terminei de assistir a este filme, o primeiro pensamento que veio à minha
mente foi: “Do mesmo jeito que Precisamos
Falar sobre Kevin te deixa com medo de ter filhos, História de um Casamento te deixa com medo de se casar”. Dito dessa
forma, o comentário soa como uma piada infame, até porque esta produção da
Netflix não é nem de longe a melhor obra a retratar os descaminhos, suplícios e
dessabores do matrimônio. De Olhos Bem
Fechados, de Kubrick, Trama Fantasma,
de Paul Thomas Anderson, ou o brasileiro Como
Nossos Pais, de Laís Bodanzky, para ficar apenas em alguns exemplos, representam
muito melhor os conflitos da vida matrimonial (o mesmo poderia ser dito das
novelas O diabo e Felicidade Conjugal, de Tolstói). No
entanto, História de um Casamento
mostra esplendidamente o quanto um processo de divórcio pode ser cansativo e
doloroso – e também dispendioso, vale dizer –, especialmente quando há crianças
e interesses tão distintos envolvidos. Assim, o “medo” de se casar referido
acima diz respeito não aos problemas inerentes à manutenção de um
relacionamento tipicamente monogâmico, consumado contratualmente, mas sim à
possibilidade de ter de passar por tal processo, o que indica que o título “História
de um Divórcio”, em alternativa ao original, seria bem pertinente ao filme. O
motivo de o longa de Noah Baumbach provocar esse tipo de sensação se deve a
dois fatores principais: à verossimilhança dos acontecimentos encenados e à
força das atuações. Quanto ao primeiro fator, há que se elogiar a inteligência
do roteiro escrito pelo próprio diretor, que não apenas busca expor os dois lados da
história com equilíbrio (embora nem sempre seja exitoso nesse intuito), apresentando as
frustrações e ressentimentos que cada um nutre em relação ao outro, mas também
encontra espaço para fazer um comentário a respeito dos papéis socialmente
esperados de homens e mulheres como pais e mães. Quanto ao segundo fator,
merecem aplausos as ótimas performances de Adam Driver e Scarlett Johansson,
que, por meio de sua intensa entrega aos seus respectivos papéis, contribuem
para conferir verdade aos eventos testemunhados pelo espectador. Nos momentos
em que seus personagens discutem, é possível perceber a gradual perda da
paciência, que se manifesta em mudanças súbitas no pitch vocal, inquietação e, eventualmente, lágrimas, tudo entregue
de maneira quase natural pelos dois atores principais. Por fim, História de um Casamento conta com uma
direção discreta e operante, que raramente chama atenção a si mesma, mas, vez
ou outra, busca representar algum sentimento de forma visual, como na cena em
que o casal fecha um portão entre si enquanto se encara.
Avaliação:
4/5
Jojo Rabbit,
de Taika Waititi
Johannes
“Jojo” Betzler é um garoto solitário crescendo na Alemanha nazista durante a
Segunda Guerra Mundial. Doutrinado pela ideologia do Terceiro Reich de Hitler e
condicionado a agir como um fanático, ele entra em conflito quando descobre que
sua mãe abriga uma garota judia no sótão de sua casa. Se esta breve sinopse soa
familiar, é porque Jojo Rabbit, de Taika Waititi, é de fato um filme bem
convencional. Sabemos, desde o princípio, que o longa contará uma história de
crescimento, aprendizado e descoberta de humanidade no outro. Seu realizador,
que além de dirigir, assina o roteiro e interpreta uma versão imaginária e
pateta de Hitler, investe em piadas arriscadas, especialmente quando
consideramos o contexto político recente, mas que funcionam na maior parte do
tempo. É particularmente divertida a gag
envolvendo a conhecida saudação nazista, mas também é possível destacar as
sequências que tiram sarro da completa
falta de noção do ufanismo cego. Mas talvez o melhor aspecto de Jojo Rabbit
seja mesmo a atuação de Scarlett Johansson como a adorável Rosie Betzler, que
encanta em seu comprometimento com uma causa nobre ao mesmo tempo em que busca
proteger o próprio filho, atuando como uma verdadeira amiga deste, apesar de
suas divergências. O jovem ator Roman Griffin Davis, que vive Jojo, faz um
trabalho funcional, saindo-se melhor que seu colega Archie Yates, que embora
possua alguns dos diálogos mais divertidos, nem sempre os entrega da melhor
maneira. Já Thomasin McKenzie sai-se muito bem, vivendo os dramas e conflitos
de sua Elsa Korr de forma competente. A versão abobalhada de Hitler
interpretada por Waititi, que funciona quase como um alter ego de Jojo, é de
fato espirituosa, mas não deixa de soar estranho que a parte do protagonista
que lhe dá apoio e confiança em seus momentos de dificuldade seja justamente
aquela que incorpora seu lado mais fundamentalista e doutrinário. A fotografia
do filme, mais colorida e aprazível no início da história, embora pareça querer
refletir o deslumbramento juvenil do protagonista, bem como o período feliz de
sua vida, compartilhado com a mãe, acaba, não intencionalmente, transmitindo
uma sensação ambígua. À medida que o filme se torna mais cinza, com cores mais
apagadas, podemos supor que as experiências vividas por Jojo contribuíram para
seu amadurecimento e mudança como indivíduo, representando o abandono da
ingenuidade da infância, mas, alternativamente, poderíamos entender a alteração
na dinâmica das cores como o distanciamento de um período radiante, em que o
ambiente bucólico de antes contrasta com a devastação de agora trazida pelas
forças inimigas, o que, tenho certeza, não era a intenção do diretor.
Avaliação:
3/5
O Irlandês,
de Martin Scorsese
Eu
sempre pensei nos filmes sobre a máfia italiana nos Estados Unidos como estudos
sociológicos, investigações sobre o funcionamento de uma organização com suas
próprias regras, códigos e estrutura hierárquica. É claro que há também, nessas
obras, os tiros, as explosões, as traições, as vendettas... Mas o que realmente intriga no gênero é como as normas
e valores dessa organização sobrevivem aos mais diferentes contextos e afetam
as pessoas a ela submetidas, tanto no nível individual quanto no interpessoal. A
mim sempre pareceu fascinante como um homem poderia sentar ao lado de outro a
quem sempre considerou um amigo, tratá-lo com estima e amabilidade, apenas para
no minuto seguinte assassiná-lo com crueldade. Desde que se popularizaram, os
filmes sobre a Cosa nostra italiana nos
ensinaram um pouco sobre essas regras e códigos específicos, bem como sobre a
extensão da influência de tal associação criminosa na sociedade
norte-americana. Nesse sentido (e apenas nesse sentido), O Irlandês é semelhante a outras histórias sobre a máfia: ao longo
da projeção, não apenas aprendemos o significado de alguém dizer que está “um
pouco preocupado” com algo ou da frase “pintar casas”, mas também nos
surpreendemos ao observar como os mafiosos puderam influir até mesmo em uma
eleição presidencial. Por outro lado, o novo longa de Scorsese funciona
praticamente como uma síntese dos temas já trabalhados pelo diretor em seus projetos
anteriores. Ao apresentar diferentes personagens, o roteiro de Steven Zaillian
conta com legendas que revelam seus destinos, servindo como lembretes dos
caminhos que, conforme nos ensinou The
Sopranos, estão disponíveis para as pessoas que escolhem esse estilo de
vida: quando não a colaboração com a polícia (vedada pela omertà, a lei do silêncio, sob pena de morte), a prisão ou uma
morte violenta. E por falar no extraordinário seriado de David Chase exibido
pela HBO (do qual lamentavelmente Scorsese não é fã), é prazeroso ver atores
que dele fizeram parte com papéis em O
Irlandês, como Kathrine Narducci, que interpreta a esposa do gângster
Russell Bufalino, e Steven Van Zandt, que faz uma ponta como o cantor Jerry Vale. Diferentemente de Os Bons Companheiros, em que primeiro mergulhamos no mundo do crime
a partir de um olhar sedutor, com todas as supostas vantagens que oferece, para
apenas depois vermos tudo desabar, finalmente enxergando seu lado sombrio e
temerário, O Irlandês conta com uma
atmosfera melancólica do começo ao fim, que é concebida com a ajuda da trilha
sonora sempre soturna. As músicas não originais presentes no filme,
cuidadosamente selecionadas, também contribuem nessa direção, aparecendo nos
momentos certos da trama (como In the Still of the Night, dos Five Satins, que abre e encerra o longa). Scorsese, aliás, controla a narrativa habilmente,
como o veterano que é, e a história vai e volta no tempo sem causar confusão ao
espectador. Também são dignos de nota os efeitos visuais do longa. Embora o
rejuvenescimento facial de Robert De Niro provoque certo estranhamento a
princípio (ao menos em mim provocou), ele acaba se mostrando competente após esse impacto inicial, o que só
funciona graças ao trabalho corporal do ator, que, no auge de seus setenta e
seis anos, consegue, dentro de seus limites físicos (evidenciados numa cena de espancamento perto do início do filme) convencer como um homem perto dos quarenta. O trabalho de
maquiagem, principalmente para o envelhecimento de certos personagens, também é
admirável. Após anos atuando de forma medíocre em projetos desinteressantes, De
Niro finalmente volta à boa forma, mas acaba soando um pouco artificial quando
seu Frank Sheeran, em determinado momento do filme, tem de mentir para outro
personagem por telefone. Mesmo assim, é formidável quão bem ele incorpora o
sujeito durão que, por sua ascendência, estará sempre na posição de receber
ordens de alguém com mais poderes, por mais que ele próprio tenha prosperado no
mundo do crime. O conflito vivido por seu personagem em relação a um
acontecimento envolvendo o de Al Pacino torna-se relacionável justamente pela
excelente dinâmica que os dois atores possuem em cena. E o que falar da atuação
de Joe Pesci, a não ser que é incrível? Ao contrário dos personagens explosivos
que – de forma igualmente competente – ele costumava fazer em outros filmes de
Scorsese (como Os Bons Companheiros e
Cassino), aqui sua interpretação é
comedida, inspirando medo (e, alguns diriam, respeito) sem em nenhum momento
recorrer a gritos ou agressividade. As sequências em que seu personagem e o de
De Niro compartilham um pão, em diferentes momentos de suas vidas, são de um simbolismo
extremamente poderoso. O trabalho de Al Pacino na pele do líder sindical Jimmy
Hoffa, por sua vez, é irretocável. O ator rouba para si a atenção de cada cena
da qual participa e encarna Hoffa com tamanha autenticidade que quase faz o
espectador enxergá-lo sob a mesma luz que ele é visto pela personagem de Anna Paquin. Cabe
pontuar, ainda, que mesmo entre um elenco de gigantes, Paquin também merece
crédito, por tudo o que consegue fazer com pouco tempo de cena e pouquíssimas
falas, atuando basicamente com o olhar e com as expressões faciais. No fim das
contas, o épico de Scorsese nos mostra que, por trás da opulência da vida de
crime, há sofrimento e solidão, e mesmo que demore a punição um dia chega para
todos, de uma forma ou de outra.
Avaliação: 4,5/5
Parasita,
de Bong Joon-ho
Em
1978, quando o ditador Ernesto Geisel indicou o general João Figueiredo para
ser seu sucessor, este último proferiu a um jornalista aquela que se tornaria
uma das maiores pérolas da política brasileira: ao ser indagado se gostava do
“cheiro do povo”, Figueiredo respondeu que “o cheirinho do cavalo é melhor”. Ao
que parece, a aversão ao “cheiro do povo” não é uma exclusividade das elites
brasileiras, como, de maneira muito perspicaz, nos mostra o filme de Bong
Joon-ho. Acompanhando uma família coreana que passa por enormes dificuldades
financeiras e vive em um porão, Parasita
é uma obra que reflete sobre questões como desemprego estrutural e desigualdade
de classe na atual fase do capitalismo globalizado. Quando Ki-woo (Choi
Woo-shik), o filho mais velho dessa família, é contratado como professor particular
de uma adolescente de classe alta, uma oportunidade de ouro emerge, e junto de
seu pai, mãe e irmã, ele passa a planejar maneiras de conseguir empregos para
todos os três na casa dos abastados Park. É fantástico como estes, manipulados
pelos protagonistas, vivem suas vidas tranquilamente, sem ciência do que
acontece debaixo de seus narizes, o que acaba funcionando como uma metáfora
perfeita para os temas discutidos no longa, representando o alheamento dos
ricos àquilo que acontece fora de sua bolha. É, aliás, extremamente oportuna a
resposta da irmã de Ki-woo quando este indaga o que seu amigo endinheirado
faria se estivesse em determinada situação: como acertadamente Ki-jung (Park
So-dam) afirma, ele jamais se encontraria em tal situação. De forma brilhante,
Parasita discute essas questões ao mesmo tempo em que engaja o espectador num thriller absolutamente fascinante,
fornecendo um material com elevado valor de entretenimento, algo parecido com
que Mad Max: Estrada da Fúria fez em
2015. O roteiro, escrito pelo próprio diretor em colaboração com Han Jin-won,
ainda conta com pequenas “pistas” sobre acontecimentos vindouros da trama, como
quando o sr. Park interpretado por Lee Sun-kyun afirma que o único ponto
negativo de sua governanta é ela “comer por duas pessoas”. Embora todo o elenco
se saia admiravelmente bem, o destaque realmente fica para Song Kang-ho, que
vive Ki-taek, o pai da família protagonista. Revelando como as distinções
sociais podem se manifestar por meio de hostilidades sutis, Parasita traz a triste mensagem de que
não adianta fazer planos quando a vida insiste em te ferrar, e que é fácil ser
simpático e gentil quando não é necessário se preocupar com a própria sobrevivência.
Como o próprio diretor Bong Joon-ho disse em entrevista, o que ele queria com
este filme era expressar um sentimento específico à cultura coreana, mas, no
fim das contas, as reações do público em diversas partes do mundo foram muito
parecidas, como se, essencialmente, vivêssemos no mesmo país, um país chamado
capitalismo.
Avaliação:
5/5
Renan Almeida
é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e
bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por
cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros e HQs.
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