O Quinze (1930)

O Quinze, romance por Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 108ª ed., 2018 [1930].

Sem revelações significativas do enredo.

É sempre difícil resenhar clássicos da literatura, uma vez que são obras consagradas e que possuem, senão sua qualidade, sua importância histórica atestada pela crítica. Quando se concorda com a opinião dos especialistas, de que a obra em questão é realmente admirável e excepcional, há pouco com o que se preocupar. Contudo, se o livro não apetece, fica sempre pairando na cabeça do leitor a possibilidade de não ter compreendido a genialidade do autor em toda a sua dimensão. Para falar a verdade, um clássico nem sempre é brilhante ou genial: ele pode ter sido apenas um marco para sua época ou ter introduzido novidades estilísticas e temáticas importantes, o que, logicamente, é um feito e tanto. Em tempo, é bom observar que foge ao objetivo deste texto apontar o que constitui um clássico.
A esta altura, já deve ter ficado claro o porquê de todo este preâmbulo: o fato é que O Quinze não me agradou tanto quanto eu esperava. Dito isso, não cabe aqui indagar se sua consagração pela crítica é exagerada ou não (o que seria de uma prepotência sem tamanho), mas tão somente explicar os motivos da frustração. É certo que confio na opinião dos estudiosos, mas não irei me furtar de emitir a minha própria, pois, do contrário, estaria sendo omisso, deixando de registrar minhas impressões e me limitando a reproduzir o consenso já estabelecido em torno do trabalho de Rachel de Queiroz. Talvez todo esse excesso de justificativas antecipadas tenha passado a impressão de que eu detestei O Quinze, o que não é bem o caso. Se, por um lado, a leitura de textos de apoio ajudou-me a compreender a qualidade técnica e a importância do romance, por outro, também me fez enxergar com clareza e entender o que exatamente eu não havia gostado nele. Passemos, portanto, à análise propriamente dita.
Em sua fortuna crítica, Augusto Frederico Schmidt afirma que precisou de apenas dez páginas para ter noção de todo o valor da obra [1]. Mário de Andrade, por sua vez, declarou que o livro vinha “enriquecer muito a já feliz literatura das secas” [2]. Sem dúvida alguma, essas congratulações evidenciam um feito extraordinário para uma jovem de apenas vinte anos de idade (sim, esta era a idade de Rachel de Queiroz quando seu romance foi publicado!). Com uma boa recepção desde o início, tanto no Nordeste quanto no Sudeste do país, onde efervescia o movimento modernista, o livro foi louvado, principalmente, pela naturalidade dos acontecimentos que nele se desdobram, pela sobriedade da narração e pela concisão das descrições, que, de acordo com Elvia Bezerra, comunicam muito com pouco, pela força das imagens criadas pela autora [3]. De fato, há verdade no retrato da seca, implacável e cruel como ela realmente é, sem romantizá-la, como observou Mário de Andrade [4]. Certamente contribuiu para esse resultado a vivência da escritora na pequena cidade de Quixadá, no interior do Ceará, onde também se passa boa parte da história. Apesar de não ter experimentado de forma consciente a grande seca de 1915 (por ser ainda muito jovem), Queiroz seguramente deve ter crescido ouvindo relatos diversos dela, de modo que conseguiu representá-la de maneira bastante admirável.
Neste cenário desolado, encontram-se os retirantes, aqueles famosos personagens da vida rural brasileira, presentes em diferentes romances e produções ficcionais, aqueles condenados a andar sob o sol escaldante, muitas vezes contando apenas com uma água escassa e salobra, vivendo uma vida de infindável miséria e sofrimento, sujeitos às mais diversas situações degradantes e dependendo da caridade alheia. Se há algo que conta a favor de O Quinze é a incrível habilidade de sua autora em traduzir aquele cenário de desolação e insalubridade humana em palavras, sem mesmo precisar usar de muitas delas, como já observado. As cenas criadas por Rachel de Queiroz neste livro captam bem o ethos da sociedade brasileira de então. Quando, em determinado ponto da história, uma retirante testemunha a morte de um de seus filhos, sua maior preocupação é a dificuldade que enfrentará para pedir esmola, agora que não contará com a piedade que a criança despertava. Em outro momento, um homem negro expressa estranheza diante do choro comovido de Conceição (a protagonista do romance) ao se despedir do retirante Chico Bento e de sua família: “Tem gente pra tudo, neste mundo! Uma moça branca, tão bem pronta, chorar mode retirante!...”. É cruelmente verossímil, mas sem sentimentalismo.
Igualmente verdadeiro é o retrato do Brasil em um aspecto bastante específico e, infelizmente, ainda atual: no romance, o governo cede passagens de trem aos retirantes que desejam migrar para fugir da seca, mas o funcionário responsável pela distribuição das passagens costuma vendê-las para quem estiver disposto a pagar mais, numa sobreposição entre o público e o privado que é, desde sempre, cara à sociedade brasileira. Além disso, Rachel de Queiroz incorpora a fala comum do meio cearense de forma orgânica, sem o exagero do “caboclismo” que, de acordo com Augusto Schmidt, costuma figurar em boa parte dos livros regionais [5]. O cuidado com a criação da vida interna dos diferentes personagens é também digno de nota, pois reflete as diferenças sociais existentes entre eles. Nesse sentido, é importante observar como a seca não atinge a todos do mesmo modo, o que demonstra a sensibilidade da autora não somente às questões de classe, mas também às diferentes formas de relacionamento com a terra por parte de cada um dos personagens. Ainda que a chuva seja vista como uma bênção e seja recebida com empolgação, ela não soluciona todos os problemas automaticamente, já que ainda é necessário fazer a vegetação crescer, o que acontece devagar.
No entanto, o que incomoda em O Quinze é o desenvolvimento da história. Como observou Davi Arrigucci Jr., o romance trouxe uma mudança na estrutura do enredo, com uma “ação rala [que] nunca se completa direito, inacabada e aberta” [6]. Isso, porém, acaba provocando no leitor a sensação de que algo ainda está para acontecer, deixando-o numa eterna expectativa, que nunca se concretiza. Não é que a história demora a engrenar, é que isso parece nunca acontecer. Dessa forma, manter-se engajado torna-se um desafio. Mesmo que essa incompletude tenha um propósito temático, como se quisesse sugerir que naquele cenário nada é capaz de florescer, nem mesmo um romance, o efeito acaba sendo o de aborrecimento e frustração, pois o livro não permite que o leitor se relacione com os personagens, tornando-se indiferente em relação aos seus destinos. Ainda que acompanhemos os sofrimentos de Chico Bento e de sua família e sejamos levados a nutrir empatia por eles diante de suas dificuldades, a identificação fica por conta apenas da tendência do público em se identificar com elemento vulnerável de uma história. A constante mudança de foco para outros núcleos da narrativa também prejudica a construção desse vínculo. Curiosamente, o livro torna-se mais instigante à medida que se desenha o romance de Vicente e Conceição e se estabelece a relação entre esta e sua avó.
            Em síntese, O Quinze é um romance de inegável importância, especialmente por estar inserido em um contexto de busca por um “abrasileiramento” da literatura nacional, muito marcada por forma e temas estrangeiros. Tal empreendimento visou abordar questões e dilemas próprios da sociedade brasileira. Trata-se, enfim, de uma obra influente, que prenunciou outras de igual importância, como, por exemplo, a novela Vidas Secas de Graciliano Ramos, mas que peca por ser pouco envolvente, o que pode tornar a leitura um tanto cansativa e enfadonha.

Notas
[1] – SCHMIDT, Augusto Frederico. “Uma revelação: O Quinze”. Fortuna Crítica. Em: QUEIROZ, Rachel de. “O Quinze”. 108ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018, p. 165-170. Originalmente publicado em “As Novidades literárias, artísticas e científicas”, n. 4. Rio de Janeiro: 18 de agosto de 1930.
[2] – ANDRADE, Mário de. “Rachel de Queiroz”. Fortuna Crítica. Em: QUEIROZ, Rachel de. “O Quinze”. 108ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018, p. 171-174. Originalmente publicado no Diário Nacional, em 14 de setembro de 1930.
[3] – BEZERRA, Elvia. “O algodão da terra”. Prefácio. Em: QUEIROZ, Rachel de. “O Quinze”. 108ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018, p. 7-14.
[4] – ANDRADE, op. cit.
[5] – SCHMIDT, op. cit.
[6] – ARRIGUCCI Jr., Davi. “O sertão em surdina”. Fortuna Crítica. Em: QUEIROZ, Rachel de. “O Quinze”. 108ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018, p. 175-190. Originalmente publicado em Davi Arrigucci Jr., “O guardador de segredos”. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 87-99.

Avaliação: 3,5/5


Renan Almeida é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros e HQs.

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