Vidas Secas (1938)
Vidas
Secas, novela por Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record, 73ª ed., 1998 [1938].
Sem
revelações significativas do enredo.
Em pleno semiárido
nordestino, no auge da seca que castiga as populações despossuídas, um pequeno
grupo se desloca sob o sol inclemente. Traz consigo, além da roupa do corpo,
apenas o que é possível carregar com a debilidade provocada por seguidos dias sem
uma alimentação decente. Um dos meninos desmaia de fadiga. O pai tem de
carregá-lo. A cadela, esperta, abocanha um preá, que servirá de refeição ao
pequeno grupo. A mãe, exultante, chega a lamber o sangue do animal morto que
escorre do focinho da cachorra.
É com este relato cru,
num cenário de completa desolação, que Graciliano Ramos inicia a narrativa de Vidas Secas. Não é preciso de mais do
que uma página para compreendermos a situação na qual se encontram aqueles
personagens. Retirantes é o que eles são. A cada seca, se deslocam em busca de
um lugar em que possam viver com menos sofrimento. São nômades, estão sempre de
passagem. Eles mal falam, apenas grunhem, murmuram, como o papagaio de
estimação do qual tiveram de se alimentar durante a viagem: uma ave de pequeno
porte, quase sem carne e, além de tudo, muda. Na ocasião em que conhecemos
essas figuras, elas encontram uma propriedade abandonada, onde decidem ficar.
Mas tão logo finda a seca, o proprietário reaparece e os enxota. Sem alternativas,
o vaqueiro Fabiano oferece os seus serviços braçais, em troca de permanecer com
sua família na fazenda.
No entanto, é tudo
questão de tempo até eles serem novamente expulsos pelas forças da natureza. No
fundo, eles sabem disso, mas se agarram à vã esperança de que no próximo ano a
seca não venha. Estão acostumados a essa vida inquieta, mas buscam afastar da
mente o futuro inevitável. Além disso, estão acostumados também às violências e
às injustiças do mundo. Fabiano, por exemplo, numa ida à cidade, acaba
enfrentando o arbítrio das autoridades locais. Por supostamente desrespeitar um
soldado, apanha e passa a noite na cadeia. As crianças e a cachorra, por sua
vez, também estão habituadas aos cocorotes e pontapés dos adultos. O simpático
animal, ironicamente nomeado de Baleia, é um personagem importante para a
história, tendo inclusive um capítulo inteiro dedicado a ele, certamente o mais
tocante.
Nesse sentido, o
crítico literário Álvaro Lins é categórico ao afirmar que, em Vidas Secas, os personagens estão entregues
ao seu próprio destino, não contando nem com a piedade do romancista*. Para
Lins, apenas um personagem Graciliano trata com simpatia: a cadela Baleia. O
capítulo com seu nome é, sem dúvida, o mais humano de todo o livro. O crítico
ainda argumenta que a obra de Graciliano Ramos constitui-se como uma sátira
violenta e um panfleto furioso contra a humanidade. O escritor alagoano fez
questão de depositar em seus personagens de Angústia
(1936) e São Bernardo (1934)
características e traços de personalidade desprezíveis. Se, no caso de São Bernardo, o autor peca pela falta de
verossimilhança, ao atribuir a um homem bruto como Paulo Honório os pensamentos
que este apresenta ao leitor, o mesmo não ocorre em Vidas Secas. A vida interior de Fabiano, de Sinhá Vitória e dos
dois meninos é confusa, desordenada e pouco elaborada.
Subjugados pelas forças
da natureza, eles também precisam se sujeitar à opressão dos mais poderosos e
do próprio Estado, que ali só está presente para recolher impostos sobre
impostos, sem oferecer aos cidadãos nada em troca. Ao ser todo mês explorado
pelo proprietário da fazenda, o vaqueiro sequer consegue expressar o seu
descontentamento, limitando-se a dizer que as contas da mulher dão um valor
diferente das do patrão. Este, sem sentir qualquer necessidade de uma
explicação mais detalhada, justifica a diferença recorrendo a juros quaisquer,
ameaçando o empregado com a dispensa caso insista em seus incômodos
questionamentos.
Nessas circunstâncias,
o cangaço chega mesmo a figurar como opção para o protagonista, que admite só
não ter ingressado nele por ser mole. Em seu frenesi causado pela aproximação
da seca, o homem chega a pensar que as arribações são a causa desta, quando na
verdade a presença delas apenas anuncia aquilo que a família tanto teme.
Desvairado, ele passa a atirar nas aves como se sua sobrevivência dependesse disso.
No final, vemos se fechar um ciclo, unindo o início ao fim. Durante toda a
trajetória dos retirantes, eles são atormentados por imagens do passado e pela
incerteza do futuro.
De acordo com Álvaro
Lins, talvez a melhor classificação tanto para Vidas Secas quanto para São
Bernardo seja a de novela, pois, segundo ele, a substância e a forma nesses
dois livros estão concentradas em uma única direção, dispostas para a revelação
de um só drama ou episódio. Pode-se acrescentar, ainda, que são histórias mais
de personagens do que exatamente de enredo. O interesse maior de Graciliano
Ramos era o de explorar as nuances da psicologia humana, algo que faz
admiravelmente bem em ambos os casos. A narração em terceira pessoa de Vidas Secas se mostra mais apropriada do
que a introspecção de São Bernardo,
uma vez que conta com personagens de origem ainda mais simples. Mesmo assim, o
autor consegue explorar sua subjetividade de maneira eficiente, sem estigmatizá-los.
Passo importante na
carreira de um escritor que se iniciou na literatura com uma obra considerada
fraca pela crítica da época (o romance Caetés,
de 1933), Vidas Secas tornou-se um
clássico obrigatório. Mesmo já sendo um escritor consagrado antes de 1938, contando
então com duas produções aclamadas, foi somente depois dessa excepcional novela
que Graciliano gravou seu nome entre os mais importantes autores da literatura
em língua portuguesa. Situando o leitor em um contexto em que não somente a
seca é um perigo, mas também a cheia, que ameaça a integridade das casas e mata
os animais com as inundações provocadas, o narrador não nos faz nenhuma
concessão. Se o criador não sente pena de suas criações por estar projetado
nelas, o leitor pode ao menos encarar o relato como denúncia social, mas
dificilmente não lamentará o destino reservado àquela família. Caso isso não
ocorra, resta apenas desejar que a simpática cachorrinha não encontre a mesma
sorte que os outros animais vistos na história, devorados pelos impacientes urubus.
*LINS, Álvaro. “Valores e Misérias das
Vidas Secas”. Posfácio. In: RAMOS, Graciliano. “Vidas Secas”. 73ª Edição. Rio,
São Paulo: Record, 1998, pp. 127-155.
Avaliação:
5/5
Renan Almeida
é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e
bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por
cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros
e HQs.
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