Uma Mulher Fantástica (2017)
Uma
Mulher Fantástica (2017), longa-metragem dirigido e
escrito por Sebastián Lelio, com atuações de Daniela Vega, Francisco Reyes,
Luis Gnecco, Aline Küppenheim, Nicolás Saavedra, entre outros.
Sem revelações significativas do enredo.
Não há nada pior do que
ter negado o direito de ser aquilo que se é. Ou, melhor dizendo, não há nada
pior do que não poder desenvolver-se livre e espontaneamente como indivíduo,
ter de se esconder da sociedade. Se dependesse dos autoproclamados “cidadãos de
bem”, alguns milhares de indivíduos seriam isolados do contato com as pessoas
“normais”. Uma Mulher Fantástica,
filme chileno vencedor do prêmio de melhor roteiro na 67ª edição do Festival de
Cinema de Berlim, parece entender isso, mostrando como o preconceito se
reproduz cotidianamente, estando muitas vezes presente em pequenos gestos e
palavras.
Nesse contexto, o longa
parte de um conflito relativamente simples: após a morte repentina de seu
companheiro, o empresário Orlando Onetto (Francisco Reyes), Marina (Daniela
Vega), uma garçonete transexual que sonha em ser cantora, se vê obrigada a
lidar com a família do falecido para resolver as questões relativas aos bens
que este deixou. Marina já é alvo de constrangimento no momento em que leva
Orlando ao hospital, quando um médico pergunta se o seu nome é na verdade um
apelido. O preconceito institucional se manifesta também quando um policial, ao
interrogá-la, insiste em tratá-la pelo pronome masculino e se recusa a usar seu
nome social. Não bastasse isso, ela ainda é impedida pela família de Orlando de
comparecer ao velório, o que mostra como sua presença, por si só, é capaz de
causar desconforto, como se o simples ato de ela existir fosse uma ofensa
àquelas pessoas. A ex-esposa de Orlando (Aline Küppenheim) ainda tenta se
justificar (porcamente) alegando que sua filha pequena estará presente, fazendo
questão de chamar Marina pelo seu nome de nascimento como forma de atacá-la. O
nome Marina, inclusive, é constantemente usado como forma de autoafirmação.
O vermelho é uma cor
recorrente na fotografia de Benjamín Echazarreta, utilizado frequentemente para
marcar o amor de Orlando e Marina, mas também como forma de indicar a
instabilidade emocional desta. O azul também domina o ambiente em algumas
cenas, estando presente nas vestimentas de Marina após a morte de seu amado. Um
tipo de plano comum no filme é aquele que enquadra a protagonista junto de seu
reflexo em alguma superfície espelhada. Espelhos são bastante utilizados no
cinema quando um personagem se questiona a respeito de suas intenções, anseios
e de sua própria existência. O curioso, aqui, é que em poucos momentos Marina
efetivamente encara seu reflexo por vontade própria. Em um momento marcante,
ela é confrontada pela própria imagem quando trafega pelas ruas da cidade. É
como se ela fosse obrigada a lidar com a imagem que apresenta à sociedade.
A escalação do elenco,
por sua vez, se mostra acertadíssima, mas talvez o principal acerto do diretor
chileno (nascido na Argentina) Sebastián Lelio seja o de ter escalado para o
papel de Marina a atriz e cantora Daniela Vega, dando, assim visibilidade a uma
intérprete transexual. A atuação de Vega é primorosa. Podemos ver, por exemplo,
como seu rosto treme ao confrontar Bruno (Nicolás Saavedra), o filho de
Orlando, pela primeira vez, tendo que explicar a causa dos hematomas
encontrados no corpo deste. O diretor também se mostra competente no emprego de
metáforas visuais, como no plano em que a protagonista é vista andando na
direção oposta ao vento, que a empurra para trás. Apesar de um tanto óbvia, a
metáfora não deixa de ser elegante, e ilustra como Marina está “contra o
vento”, como este não está ao seu favor.
O filme, contudo, não é
perfeito. A aparição frequente do fantasma de Orlando é um tanto exagerada,
reforçando uma mensagem que já estava evidente. O fantasma, inclusive, possui
até uma função narrativa, levando a protagonista para onde ela gostaria de
estar, o que acaba se mostrando um facilitador no roteiro de Lelio e Gonzalo
Maza.
Não obstante, a
importância de Uma Mulher Fantástica
é inegável, lançando luz sobre uma questão que já não pode mais ser desprezada.
Além da importância temática, o filme possui uma qualidade técnica
indiscutível. Exemplo disso, além dos mencionados acima, pode ser encontrado no
uso diegético da música. Em determinado ponto da projeção, a personagem de
Daniela Vega ouve no rádio do carro a canção You Make Me Feel Like A Natural Woman, de Aretha Franklin, o que
possui um significado narrativo óbvio. A música composta por Matthew Herbert,
por outro lado, é boa e bem utilizada pelo diretor.
Por último, há que se
destacar o cuidado do roteiro em não transformar os personagens, especialmente
a família de Orlando, em seres unidimensionais, já que o irmão deste, Gabo
(Luis Gnecco), parece realmente ser sincero quanto ao fato de sentir pela
situação a que Marina foi exposta. Se ele é sem jeito ao não saber como cumprimentá-la
pela primeira vez, talvez seja menos por preconceito que por pura ignorância.
Nicolás Saavedra, por sua vez, confere a seu personagem Bruno uma leve
hesitação no momento em que participa de um ato violento contra Marina. Esta,
no entanto, em nenhum momento é retratada a partir da ótica de uma “vitimização
objetificante”, que converte personagens oprimidos em vítimas passivas da
opressão a qual estão submetidos. Uma história dessa natureza poderia
facilmente cair nesse erro. Uma Mulher
Fantástica, porém, conta com uma protagonista que é agente de sua própria
vida. Isso, por si só, já seria um mérito enorme.
Avaliação:
4/5
Originalmente publicado no extinto site Papo Torto,
em 6 de setembro de 2017.
Renan Almeida
é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e
bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por
cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros
e HQs.
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