O Matador (2017)

O Matador (2017), longa-metragem dirigido por Marcelo Galvão, escrito por Marcelo Galvão, com atuações de Diogo Morgado, Deto Montenegro, Etiennet Chicot, Maria de Medeiros, entre outros.

 Sem revelações significativas do enredo.

            O interior do Nordeste brasileiro na primeira metade do século XX sempre forneceu um cenário muito parecido com aquele no qual se passam os westerns americanos: uma terra árida e sem lei, regada pela violência de homens brutos e pela ganância de líderes locais que, na ausência do Estado, impõem seu jugo sobre a população empobrecida. Até o contexto político é parecido. Nos EUA dos anos 1860, a Guerra Civil serviu como pano de fundo para muitos filmes de faroeste. Já aqui, as primeiras décadas do século XX foram marcadas por impulsos separatistas em diversas regiões do país e renderam diversas discussões e reflexões nas artes em geral.
            O cineasta brasileiro Glauber Rocha percebeu essa similaridade já nos anos 1960, quando produziu Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Ambos os filmes possuem elementos de westerns americanos, mas não deixam de abordar com profundidade os problemas específicos do Brasil de então. Neles estão presentes reflexões sobre a contraposição e complementariedade entre o messianismo e o cangaço no sertão nordestino e a resistência da população pobre frente a condições adversas da natureza e ao abandono do poder oficial. Assim, a nova produção brasileira da Netflix, O Matador, não traz nenhuma novidade ao recorrer a essa ideia, mas merece créditos por resgatá-la, buscando criar um western à brasileira. O resultado disso, porém, não chega exatamente a ser satisfatório.
            Escrito e dirigido por Marcelo Galvão, O Matador conta a história de Cabeleira (Diogo Morgado), um homem criado no sertão de Pernambuco desde criança por um matador chamado Sete Orelhas (Deto Montenegro), que o encontrou abandonado quando ainda era um bebê. Tendo aprendido com o jagunço tudo o que era necessário para sobreviver, Cabeleira torna-se o matador particular de Monsieur Blanchard (Etiennet Chicot), um francês que domina o comércio de pedras da região, após o desaparecimento de Sete Orelhas. A história é contada por um narrador que insiste em comentar todos os detalhes, até o que o espectador é capaz de compreender sozinho. A narração, inclusive, chega a ser tão excessiva a ponto de narrar até o que estamos vendo na tela. Não bastasse isso, o personagem de Allan Lima ainda apresenta um sotaque inconstante, que em alguns momentos praticamente desaparece.
            O roteiro de Galvão peca pelo mau uso da coincidência e do lugar-comum. Quando, por exemplo, Cabeleira vai à cidade à procura de Sete Orelhas, ele se desentende e atira em três homens, matando-os. Por coincidência, esses homens eram justamente os três pistoleiros mais procurados de Pernambuco. Como forma de evidenciar a habilidade de Cabeleira como atirador, o diretor traz o personagem girando pistolas nos dedos e guardando-as na bainha. E para completar, o protagonista ainda possui uma regra particular de não matar mulheres nem crianças, um código moral que não faz o menor sentido para alguém de cresceu como bicho, isolado da civilização.
            Apesar de trazer acertos pontuais, como a insistência de Quatro Olhos (Marat Descartes) com a higienização de suas mãos, o intérprete mudo (Edinho Santos) e o filho do francês cujos atos cruéis contrastam com seu jeito afetado, o roteiro traz inverossimilhança ao apelar para o absurdo. Para estabelecer a perversidade do personagem de Igor Cotrim, este é mostrado selecionando homens no meio da rua para estuprá-los, algo que faz aos olhos de toda a cidade. O ator ainda investe em uma performance caricatural, que ao invés de provocar o riso acaba incomodando.
            O elenco, a propósito, é bem irregular. A atuação de Diogo Morgado como Cabeleira começa causando estranhamento, mas, perto do final da projeção, acaba convencendo. É curiosa a opção por um ator português para um projeto desse tipo. Talvez um ator brasileiro pudesse incorporar melhor os regionalismos da fala do protagonista. Etienne Chicot vive o vilão de forma satisfatória, mas o fato de ele não falar português acaba prejudicando seu estabelecimento como antagonista. Destacam-se aqui o pequeno Vitor Giudici, em sua estreia no cinema, interpretando o filho de Cabeleira, papel no qual se sai muito bem, e Marat Descartes, encarnando o já mencionado Quatro Olhos. Paulo Gorgulho também surpreende em sua intensidade.
            O filme possui um bom trabalho de maquiagem, ressaltando os dentes amarelados dos personagens, seus cabelos desgrenhados e suas peles constantemente sujas, detalhes simples, mas que muitas produções de época da Rede Globo parecem esquecer. O design de produção é bom, mas exagera nas ossadas de animais para enfatizar a dureza da vida no sertão. Este sertão, aliás, é um sertão estilizado, pouco fidedigno, por conta da fotografia com cores e iluminação intensas. A opção por cores mais cruas e lavadas teria conferido um realismo maior à produção. Contudo, a escolha estética do diretor de fotografia Fabricio Tadeu pode ser justificada pela intenção de criar uma narrativa com traços de história fantasiosa.
Por sua vez, o design sonoro também é competente, mas comete uma pequena gafe ao inserir um som de zíper quando um personagem remove suas calças em uma cena de estupro. Por falar nisso, o filme contém violência explícita, e os efeitos especiais e visuais para criá-la não decepcionam. A não ser, talvez, no momento em que urubus sobrevoam um Cabeleira fraco e cansado.
            Finalmente, O Matador ainda conta com um anacronismo que o diretor tomou como licença poética, o de que a turmalina paraíba, pedra que causa fascínio ao protagonista, só foi descoberta em 1982, muito distante do período em que se passa o filme, por volta dos anos 1940. Por outro lado, seu alto valor realmente contrasta com a vida dos habitantes do local onde foi descoberta. O que mais me incomodou, no entanto, foi a confusão que o filme faz entre cangaceiros e jagunços, quando estabelece que aos primeiros competia fazer o serviço sujo ao qual Cabeleira se negava. Apesar de cangaceiros terem sido criminosos e assassinos, eles constituem até hoje, para a cultura popular nordestina, uma figura ambígua. Glauber Rocha havia compreendido isso muito bem nos seus Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.
            Para resumir, a nova produção brasileira da Netflix contava com um grande potencial, mas acabou se mostrando um projeto pouco interessante. Se, por um lado, é positivo que vejamos produções nacionais do serviço de streaming, é também decepcionante que a primeira delas na forma de longa-metragem seja menos que regular.

Avaliação: 2/5



Renan Almeida é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros e HQs.

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