Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915)
Triste
Fim de Policarpo Quaresma, romance por Lima Barreto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. especial, 2014 [1915].
Sem
revelações significativas do enredo.
Como começar a falar
sobre Triste Fim de Policarpo Quaresma?
A princípio e superficialmente, é apenas um livro sobre as excentricidades de um
homem extremamente nacionalista, mas quando se busca analisá-lo com maior
profundidade, encontra-se margem para discussão sobre os mais variados temas. Nesse
sentido, o que pretendo aqui é justamente abordar alguns desses temas, sem, é
claro, a ilusão de esgotá-los neste breve texto.
Devo
observar, primeiramente, que a leitura de Lima Barreto sempre me foi
recomendada por diferentes pessoas. E é sem orgulho nenhum que admito ter
postergado essa leitura por considerável período de tempo. Foi somente neste
ano de 2017 que adquiri o romance hoje objeto de resenha. No fim das contas,
porém, talvez não tenha sido de todo ruim a demora que levei para ter contato
com a obra do escritor em questão. Se o tivesse lido durante o final da adolescência,
no ensino médio, é possível que tivesse perdido a dimensão da importância desta
que é considerada a sua obra máxima.
Tendo
feito essas considerações, é conveniente questionar: quem é Policarpo Quaresma?
“Você, Quaresma, é um visionário”. Antes de tudo, é um personagem
inacreditável. Inacreditável no sentido de extraordinário, impressionante. Um funcionário
público de meia idade que, após anos de estudos sobre a geografia e cultura do
Brasil, chega ao ato extremo de patriotismo de apresentar à Câmara dos
Deputados um requerimento propondo que o tupi torne-se a língua oficial do
país. A exemplo daquilo que sucede na ficção, só nos restaria rir de um sujeito
como esse. Quaresma, contudo, é um homem tão simples e tão bem intencionado em
seus propósitos que é praticamente impossível não criarmos empatia por ele e
nos irritarmos com seus detratores. Ele é tão fora da realidade que é mesmo
incapaz de compreender o motivo pelo qual vira motivo de chacota entre os
ilustres deputados. Alvo de piadas e zombarias também em seu ambiente de
trabalho, a irritação de Quarema com os colegas não é por estes caçoarem da
ideia contida no tal requerimento, mas sim por eles duvidarem de sua capacidade
de efetivamente falar o idioma (o que mostra como o homem realmente não
consegue compreender o absurdo de sua proposição). É com o objetivo de provar a
sua fluência que, sem pensar, o major submete aos seus superiores um documento
redigido integralmente em tupi. Acompanhamos, então, as consequências desses
atos e os acontecimentos que levarão o personagem ao triste fim anunciado no
título do livro.
O
romance narra a vida da alta sociedade suburbana carioca. Uma alta sociedade
que, conforme pontua o narrador, só é alta nos subúrbios. Ela é composta
majoritariamente por burgueses, que ganharam a vida com o comércio, e por funcionários
públicos, gente que acumulou recursos e desfruta de uma vida confortável e
mediana. Estão aí inclusos uma galeria de militares como o General Albernaz, homens
que nunca viram a guerra, mas entretêm seus interlocutores com histórias sobre
batalhas nas quais jamais estiveram. Trata-se, em suma, de gente com
mentalidade limitada a ponto de acreditar que um homem não formado não deve se
dedicar à leitura e aos estudos, atividades que, de acordo com essas pessoas,
devem ser reservadas apenas aos acadêmicos. Assim, Dona Maricota, a esposa de
Albernaz, chega a culpar os livros pela suposta loucura dos atos de Quaresma.
Barreto, a propósito,
utiliza-se deste romance para delinear uma crítica às instituições militares (e
ao funcionalismo público em geral), ressaltando como as comissões, que deveriam
ser por merecimento, acabam sendo dadas aos protegidos. Além dos sutis comentários sobre a
desigualdade socioeconômica, está presente uma reflexão sobre a condição das
mulheres no final do século dezenove. Ismênia, filha do mencionado General
Albernaz, é um exemplo de uma leva de mulheres cuja criação foi totalmente
voltada para o casamento. Desprovida de quaisquer outros objetivos na vida, ela
reflete a própria situação das mulheres das classes média e alta nesse período.
O narrador, inclusive, reforça a mensagem quando afirma que as moças são
levadas ao casamento como que por inércia, sem que haja amor aí envolvido.
O
romance também acerta ao retratar o governo de Floriano Peixoto como ele de
fato era: uma ditadura. O segundo presidente da república, aliás, é personagem
do livro, sendo referido, sem cerimônias, pela palavra “ditador”. Nada mais apropriado,
uma vez que a perseguição política era rotina para quem quer que ousasse
criticar o governo, correndo o risco de perder o emprego, a liberdade ou mesmo
a vida. Apesar do completo desastre de tal governo, com todo o seu
autoritarismo e instabilidade, Barreto sugere que a fidelidade a ele dependeu
mais do alcance de posições e cargos em seu interior do que de qualquer outra
coisa. Nada poderia ser mais atual no Brasil pós-golpe de 2016, não é mesmo? O
paralelo com o Brasil atual talvez possa ser traçado também na crítica de
Barreto ao que ele chama de “nefasto e hipócrita positivismo”. Afinal, uma das
primeiras medidas de Michel Temer ao assumir a presidência não foi justamente
mudar o lema do governo para o “ordem e progresso” presente na bandeira
nacional? Isso sem falar no péssimo e autoritário slogan “Não pense em crise, trabalhe!”, no qual o governo golpista
investiu para reforçar na mente dos trabalhadores a necessidade de manutenção
da ordem.
Em
outras palavras, Triste Fim de Policarpo
Quaresma é excelente em identificar vícios que até hoje se reproduzem na
sociedade brasileira. Quando, por exemplo, o protagonista se muda para o
interior do país e, mesmo sem se interessar por política, acaba sendo alvo de
ataques dos caciques locais, o romance nos mostra como figuras poderosas se
utilizam de sua posição no Estado para intimidar potenciais adversários e
conseguirem seus objetivos. Ele nos diz que os governantes não governam pelo
povo, mas sim por eles próprios, para a consecução de seus próprios interesses
particulares. Apesar de o autor se utilizar de uma abordagem mais direta (seja
ao tratar Floriano como ditador, ao caracterizar o positivismo como nefasto e
hipócrita ou ao lembrar como nós “vivemos do Estado”), todos esses comentários
políticos e sociais não surgem ao acaso, mas sim aparecem de forma orgânica ao
longo da narrativa. A obra pode ser vista como um retrato fidedigno do Brasil
da primeira república, mas acaba trazendo questões bastante atuais, o que evidencia
a nossa dificuldade em resolver nossos problemas ao longo do tempo.
Somente para não perder
a oportunidade, devo mencionar o marido de Olga Coleoni, a afilhada de
Quaresma. Esse personagem é uma referência à presunção e arrogância dos
acadêmicos sem conteúdo, que investem em floreios gramaticais para comunicar
ideias sem importância. Acabam, assim, por impressionar aqueles que os leem.
Mais uma vez, Barreto é incrivelmente atual, principalmente quando lembramos o
quanto determinados setores da sociedade brasileira se deixam impressionar pelas
mesóclises na retórica vazia de Temer.
Como reflexão final,
podemos falar da discussão sobre nacionalismo que Lima Barreto nos propõe. O Triste Fim de Policarpo Quaresma é um
ótimo exemplo de como muitas vezes a ficção pode contribuir para fomentar
diferentes debates. O romance nos mostra a artificialidade por trás do
nacionalismo, um construto ideológico que serve a objetivos específicos. Nos
Estados Unidos, por exemplo, a reivindicação de uma identidade nacional levou ao
imperialismo e ao genocídio de inúmeros indígenas. Nas guerras, também, a
mobilização de tais signos é fundamental. E se as terras brasileiras não são
realmente as mais férteis do mundo, o povo brasileiro o mais virtuoso, a nação
brasileira a mais rica entre todas as outras, então a quem interessa esse
discurso?
Avaliação:
5/5
Renan Almeida
é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e
bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por
cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros
e HQs.
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