O Primo Basílio (1878)

O Primo Basílio, romance por Eça de Queiroz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004 [1878].

Sem revelações significativas do enredo.

            O Primo Basílio conta com uma galeria de personagens odiáveis. Embora estes busquem sempre mostrar publicamente apenas suas virtudes e qualidades, ao leitor exibem suas várias dimensões, intenções e facetas. Jorge, por exemplo, o engenheiro bem posicionado na sociedade lisboense que se casa com a jovem e encantadora Luísa, não é o marido perfeito que aparenta ser. Em suas longas viagens a negócios, escreve cartas apaixonadas à esposa, alegando sofrer desesperadamente com sua ausência e com a distância que os separa. Entrementes, confidencia ao amigo de infância Sebastião o orgulho que sente de algumas conquistas que fez em terras distantes. O próprio Conselheiro Acácio, que exala respeitabilidade, possui mesmo seus segredinhos, revelados ao leitor muito oportunamente. Aliás, se fosse necessário resumir este romance de Eça de Queiroz em uma única palavra, provavelmente essa palavra seria “aparências”. Mas antes de discutir essa e outras questões, é necessária uma pequena contextualização.
            Pois bem, Luísa vivia uma vida tranquila de burguesa em seu casamento com Jorge, o engenheiro já mencionado anteriormente. Unira-se a ele mais por conveniência do que por amor, anos após uma grande desilusão amorosa, causada pelo seu próprio primo, de nome Basílio de Brito (o primo Basílio que dá título ao romance), por quem fora apaixonada e com quem pretendia se casar. Basílio, após viajar ao Brasil no intuito de recuperar sua fortuna, rompe o relacionamento com a moça e destrói suas esperanças de um futuro com ele. Anos depois, já rico e parte da alta sociedade, ele volta a Lisboa e acaba com o sossego de sua já casada e feliz prima. Esta, por sua vez, facilmente se apaixona e cai nas tentações do adultério enquanto seu marido se encontra em uma das longas viagens a negócio.
            Conforme afirmei em meu texto sobre Quincas Borba, as obras do chamado realismo literário utilizaram-se fartamente do adultério para a construção do conflito em suas narrativas. Este movimento, é importante lembrar, surge em reação ao romantismo. Assim, é mais do que natural que os relacionamentos amorosos sejam abordados a partir de outra perspectiva. Nas obras produzidas no âmbito do romantismo em que o amor extraconjugal se fazia presente era comum os amantes fugirem em busca da felicidade, viverem uma paixão puramente ideal ou lutarem pelo sentimento que nutriam um pelo outro contra seus opositores. Os comportamentos dos transgressores dos votos do matrimônio eram justificados de uma ou outra forma, sendo o marido traído muitas vezes retratado como frio, sem paixão, em contraposição ao amante jovial, bonito e cujo amor transborda de tanta intensidade. No realismo, isso muda: o que vemos são figuras trágicas, não mais idealizadas, que dificilmente encontram um final feliz. Assim é em Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, Ana Karenina (1877), de Liev Tolstói, e neste O Primo Basílio, de Eça de Queiroz. Curiosamente, as mulheres adúlteras nas obras do realismo costumam encontrar destinos trágicos, embora isso não seja uma regra.
          Outra característica dessa escola literária, que costuma aparecer em menor ou maior intensidade em diferentes autores, é a crítica aos estratos elevados da sociedade, em especial à burguesia. Conforme a sinopse de O Primo Basílio da primeira edição da Companhia Editora Nacional, publicada em 2008, o romance é uma crítica à sociedade burguesa de Lisboa. Eu acrescentaria que, além de uma crítica à burguesia, é também uma crítica à aristocracia portuguesa, uma vez que o país ainda vivia uma monarquia, embora não mais absoluta devido à Revolução Liberal do Porto de 1820.
            Eça de Queiroz tem um estilo que lembra ligeiramente o de Machado de Assis, outro escritor que produziu obras importantes em língua portuguesa no contexto do realismo. Por isso, frequentemente os dois são comparados. Em Eça, contudo, as descrições de cenários e paisagens são mais abundantes do que em Machado. Apesar de contemporâneos, os dois autores sofreram influências de fontes diferentes.
            Uma das críticas tecidas à burguesia em O Primo Basílio tem a ver com a ideia de que, para esta classe, as aparências são de uma importância central para a vida pública. Quando, por exemplo, a vizinhança começa a comentar maliciosamente as saídas frequentes de Luísa, logo após cessarem as insistentes visitas de Basílio a sua casa, Sebastião busca desesperadamente alguma justificativa para tais escapulidas. Mesmo sabendo que há algo estranho no comportamento da moça, sente-se satisfeito quando consegue mudar a opinião dos vizinhos sobre ela. Ainda sobre as aparências, Jorge sugere a Luísa que não se encontre com Leopoldina, uma velha amiga sua, por conta de sua má fama de mulher de muitos amantes. O engenheiro chega inclusive a proibir a presença daquela “devassa” em sua casa. A mesma Leopoldina, em determinado momento, queixa-se revoltada das senhoras da sociedade lisboense que, apesar de possuírem amantes, conservam uma imagem de respeitabilidade diante de todos, ao contrário dela própria.
            Há também uma pincelada sobre a questão de classe. Quando Luísa pede socorro a Sebastião devido a uma situação delicada em que se encontra, este parece mais indignado com a criada Juliana por ela ter transgredido sua posição de classe do que por ter cometido a infração que cometeu. Além disso, fiquei impressionado com a semelhança existente entre classes altas portuguesas (tal como retratadas por Eça de Queiroz) e as brasileiras, ambas marcadas por um forte traço de antinacionalismo, sempre reclamando do próprio país e enaltecendo sobremaneira as qualidades do estrangeiro. A cutucada nos estratos mais elevados da sociedade é rematada com a reação de membros destes a determinada tragédia que tem lugar ao final do romance, o que nos faz considerar ainda mais odiável o personagem que dá nome ao livro.
            O Primo Basílio é um ótimo romance, belo exemplar de sua escola literária, cujo único negativo é se arrastar por mais de quatrocentas e vinte páginas (em minha avaliação, desnecessariamente). No mais, sua escrita é fluida, e Eça é extremamente habilidoso para transitar entre as diferentes histórias de fundo dos diferentes personagens que compõem seu romance, conferindo-lhes complexidade e profundidade.

Avaliação: 4,5/5



Renan Almeida é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui mestrado e bacharelado também em Ciência Política pela mesma universidade. Apaixonado por cinema, literatura e quadrinhos, escreve resenhas e análises de filmes, livros e HQs.

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